Caixa Dois, de Bruno Barreto (Brasil, 2007)
por Cléber Eduardo

A democratização do dinheiro sujo

O título, Caixa Dois, dá a deixa: estamos no mundo das falcatruas da elite e da classe média brasileira. Estaríamos em uma democratização do acesso ao dinheiro sujo, aquele “contra as obrigações com o Estado”, que traz os debaixo e os do meio ao topo da negociação e do trambique? Isso mesmo. O pobre de padrão de vida digno, honesto em seus princípios e atitudes, mas não sem ambição de progresso, aprende meios de roubar. A tecnologia promove a paridade circunstancial entre as classes, quando a lei é a da maracutaia. Pode-se ver de maneira mais estreita, como resposta a um momento (“Brasil de Lula”), como denúncia banalizada, mas o alvo do humor é generalista: a vocação do brasileiro para o crime e para os atalhos em geral.

Como núcleo da intriga, há um cheque. Valor: R$ 50 milhões. Característica distintiva: uma mancha de ovo. São evidências de uma transação ilegal, envolvendo políticos e empresários, que, depois de ser colocada em risco por ação do acaso, pára na conta errada por trapalhada humana, iniciando uma negociação em torno da bufunfa. Estão dadas as bases do mundo ficcional: um microcosmo construído para ser reflexo de uma metástase da amoralidade, que por sua vez só se torna possível pela vocação para a incompetência.

A origem teatral – peça de Juca de Oliveira – é explícita. Não significa que, para diminuir essa presença da origem, não haja esforços. Bruno Barreto investe no pingue pongue verbal, na troca de planos de um rosto para outro, na agilidade da câmera e dos cortes em alguns momentos. Não se fecha a possibilidade, nessas operações, para alguma imperfeição. Nem todo enquadramento mais espertinho integra-se ao material, nem toda passagem de um plano a outro está livre de arranhar a vista. Estamos tratando de um filme de Bruno Barreto, não esqueçamos disso, que nunca foi um estilista. Tampouco um realizador de concepções visuais particularmente inspiradas.

O esforço para tornar o material mais cinematográfico não encontra apoio, porém, na própria estrutura dos acontecimentos. Embora grandes cineastas tenham trabalhado na condensação de ações em determinado espaço (para ficarmos em um, pensemos no Jean Renoir de As Regras do Jogo), a convergência da intriga para o desfecho na casa dos pobres dignos, do funcionário-padrão tratado pelo filme como bocó (Daniel Dantas), acentua a origem nos palcos e se aproxima de A Partilha, de Daniel Filho, baseada em peça de Miguel Falabella. Cinema e teatro. Uma relação cada vez mais frequente nesse momento da produção, que pouco tem oferecido de interesse estético para apreciadores de linguagem cinematográfica, algo ignorado por quase todas as adaptações.

Insistamos um pouco mais em A Partilha e Caixa Dois. Nos dois casos (a sala de uma casa em Caixa Dois e um corredor de prédio em A Partilha), há disputa material. No entanto, se em A Partilha há afetos tensos, mais que ambição, em Caixa Dois vê-se bipolaridade: o pragmatismo rebelde e o servilismo convicto – com vitória do primeiro, talvez em nome de uma reafirmação da malandragem. Uma reafirmação que a celebra, que a legitima, que leva atores+personagens+filme a rirem da condição de brasileiros, ou seja, da condição de vítimas da incompetência e do azar (inimigos da prática perfeita da malandragem). Porém, uns riem por último – maneira de texto e filme fazerem justiça por meio da ficção, promovendo a distribuição do dinheiro sujo.

Se termina em piada, com adesão comemorativa à malandragem (talvez ali vista como potência política da classe média), Caixa Dois é um esvaziamento. Nem seu denuncismo frouxo, nem seu humor sem contundência, atacam nada. Pelo contrário: há da parte do filme uma resignação cínica com todo um estado de coisas, diante do qual ri sem nenhuma corrosividade e ao qual celebra como nosso destino. A celebração do brasileiro amoral em assuntos de finanças junta-se a celebração da baianidade hedonista de Ó Paí Ó, de Monique Gardenberg, como afirmações de identidades contemporâneas bastante atreladas a estereótipos históricos: o de povo malandro e com sexo no corpo.


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