Cafundó, de Paulo Betti e Clóvis Bueno (Brasil, 2005)
por Lucas Keese

Filme de pouca fé

João de Camargo, ex-escravo nascido na região de Sorocaba no estado de São Paulo em meados do século XIX, e morto nos anos 1940, fundou um culto religioso que teve grande repercussão na história local, e para além dela. Inúmeros estudos, como um dos primeiros trabalhos do sociólogo Florestan Fernandes, Contribuição para o estudo de um líder carismático, tentaram dar conta do sincretismo religioso e da resistência cultural negra que se configurava dentro dele.

Entretanto, se são claras as boas intenções de um projeto que tenta ampliar a significação desse personagem histórico para além de sua origem e das restritas abordagens acadêmicas, que há nele um potencial de significação tremendo dentro da cultura brasileira, não podemos dizer o mesmo do resultado. Cafundó parece ter ficado no reino das boas intenções – muito bom para a captação de recursos, mas que não garante nada em termos de força na tela e repercussão posterior.

A história de João de Camargo é narrada no filme de estréia na direção de Paulo Betti e Clóvis Bueno seguindo uma cronologia simples, onde pouco há de orgânico no encadeamento das ações e o desenvolver da trama é marcado por uma mecânica explicativa. Os diretores colocaram no filme uma diversidade de acontecimentos que marcaram a vida de João de Camargo, desde a sua trajetória até a fundação da igreja, com o desenvolvimento da nova e do carisma do líder religioso. Estão lá: a lenda do menino Alfredinho, a influência de sua mãe e da comunidade de ex-escravos quenome ao filme, o padre que o inspirou, suas curtas ocupações como cozinheiro, operário etc, a febre que assolou Sorocaba, seu breve matrimônio, a banda da igreja, suas curas e milagres, e os conflitos decorrentes do sincretismo, seja com a elite e sua ordem, seja a batalhaéticacontra os que comercializavam sua , lembrando a fala de sua mãe plantada no início do filme.

Começamos com João e seu parceiro Cirino escravo recém-liberto como ele. Logo nesse início, João admite ao amigo ouvir vozes em sua cabeça, uma explicitação de seu caráter extraordinário efetuada numa fala enxertada pelo roteiro, uma operação que se dará repetidas vezes durante o filme. Essa preocupação em explicitar ou justificar fatos e características históricas ligadas ao personagem limitam a estrutura dramática a um mero suceder de acontecimentos: João se casa, sua mulher o trai, ele a larga e em decorrência disso entra num estado de depressão marcado pelo alcoolismo. Posteriormente, quando está no fundo do poço, uma intervenção transcendental através de visões ocorre e ele inicia sua transformação em líder religioso, fundando a igreja do Bom Jesus da Água Vermelha. Esse esquematismo da trajetória de João, marcado pela oposição entre sua mulher (devassa, encarnação de espíritos ruins) e a igreja e a religiosidade, é sustentado por uma cena em que João, correndo atrás da mulher, se depara com uma encruzilhada: entrar na igreja em cuja porta está o padre que viria a ser uma de suas inspirações e referências religiosas ou seguir a mulher insinuante que, logicamente, seguiu para trás da igreja.

Muitos acusaram Betti de ter pecado pelo excesso, mas excesso de quê? for de fatos e caracterizações puramente enumeradas, porque de fatos em termos de construção dramática e de caracterizações que utilizem bem o cinema o filme é rarefeito. Betti poderia extrair muito mais sentido, e dar mais força ao filme caso se concentrasse em alguns dos assuntos e conflitos que se contenta apenas em citar. A comunidade dos ex-escravos, por exemplo, apesar de dar nome ao filme, é mal utilizada. Até mesmo uma possível relação entre a cultura ali mantida e o processo de resistência cultural efetuado pelo sincretismo de João é de fraca sustentação. Outros conflitos em relação ao sincretismo como a negação por parte dos negros da incorporação de elementos do catolicismo, e o processo de criminalização que o culto de João sofreu por parte da elite católica também são pouco trabalhados. Com receio de que por ser devoto de João de Camargo sua direção ficasse comprometida, Betti convidou Clóvis Bueno para dirigir em parceria. Talvez, se não tivesse esse receio e se jogasse mais em sua própria experiência, largando esse mero relatar de fatos e se preocupando mais com no que esses fatos poderiam se transformar no cinema, Betti utilizasse melhor os elementos de que dispõe (entre eles, dois dos melhores atores da atualidade: Lázaro Ramos e Flávio Bauraqui).

Há, para ficarmos no cinema brasileiro, diversas abordagens marcantes da religião, exemplos de sua atração projetados em imagens e sons. Mesmo no distante Barravento de Glauber Rocha, em queum papel pejorativo da religião na história, o modo com que uma cena de um ritual de candomblé é filmada faz ela alcançar uma força e beleza notáveis, deixando ver o fascínio de Glauber por aquilo. É necessário ir além dos fatos (e além da redução da experiência religiosa a fato, como nas visões de João no filme...), afinal estes estão bem destrinchados nas teses sociológicas. A expressão dos significados e contradições de nossas religiões tem no cinema um potente campo, como provaram Eduardo Coutinho em seu Santo Forte ou Glauber (não apenas no filme citado). Para Cafundó, no entanto, faltou . Principalmente no cinema.

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