Cabeça a Prêmio,
de Marco Ricca (Brasil, 2009)
por Eduardo Valente
Estréia
de vigor
Vai ser quase inevitável que em toda discussão
sobre Cabeça a Prêmio ressurja a lembrança de Os Matadores, longa
de estréia de Beto Brant em 1997. E é muito justo até que isso aconteça, já que
os pontos em comum entre as duas obras são inúmeros: para além de ser esta também
uma estréia na direção de longas, Marco Ricca é um parceiro de trabalho de Brant
(tendo coproduzido e protagonizado tanto O Invasor quanto Crime Delicado)
e se baseia aqui em obra de Marçal Aquino, outro constante colaborador de Brant,
que se passa também na mesma zona fronteiriça do Pantanal brasileiro onde o filme
de 97 se localizava. Mas a maior semelhança de fato está no resultado e não em
nada que se possa listar já desde as origens: trata-se de uma estréia em longa
de igual (ou até superior) domínio de suas ferramentas e intenções, com uma mistura
de aclimatação a um ambiente inóspito e desconhecido e uma tranquilidade muito
grande na condução de sua narrativa. Narrativa esta que,
no caso de Cabeça a Prêmio, é não só mais linear como, principalmente,
mais ampla. A forma como a narrativa de Ricca se espalha por diferentes núcleos
e personagens permite o tempo todo que saibamos desde o começo que ali há uma
interseção final inevitável, que não tem nada dos jogos de roteiro de um Arriaga,
mas sim a interdependência das relações pessoais, profissionais, políticas e sociais
que regem aqueles personagens. Cada pequeno ato vivido no âmbito das pessoalidades
de cada um deles afetará diretamente o destino dos outros, e nesse sentido é realmente
impressionante a capacidade que o filme possui de nos fazer acreditar em cada
um dos microuniversos que delineia, e que se encaminham inexoravelmente para a
tragédia. Assim, Marco Ricca amplia o escopo do que era pouco mais do que um (bom)
exercício de estilo em Os Matadores, e não por acaso podemos sentir
ecos shakespearianos fortes, num filme que não faz nenhuma questão de ressaltá-los. Que
não restem dúvidas: é dos corpos dos seus atores que Marco Ricca retira a força
maior do seu filme – e aqui corpos é mesmo a palavra porque a presença maciça
em cena de um Fulvio Stefanini ou a sensualidade extremamente controlada de uma
Alice Braga são trabalhos de corpo inteiro. Ricca consegue a improvável façanha
de criar para cada um de seus personagens um registro próprio onde nem se busca
o naturalismo extremo nem a performance auto-centrada. Só desta maneira ele consegue
nos vender com tamanha força a presença de um Eduardo Moscovis como um matador
fracassado, por exemplo (embora o desfecho deste personagem talvez seja um dos
poucos pontos fracos do roteiro), ou um Otávio Muller que se equilibra com precisão
entre a sutileza e o espetáculo de atuação. Todos os personagens do filme, por
menor que seja sua participação (e pensamos aqui no Policial Federal da parte
final, ou da mulher do personagem de Stefanini), existem com uma presença firme
em cena, porque Ricca encontra o tempo e o ritmo interno de suas interações com
um cuidado extremo.
De fato, talvez fosse esperado que um ator inteligente
como Marco Ricca conseguisse fazer do jogo de seus atores uma das grandes qualidades
que seu filme possua. No entanto, certamente não seria esperado que estes atores
ganhassem vida de uma maneira conjunta tão firme, onde os outros elementos do
cinema estão sempre a serviço desta verdade interna que é a base de todo o filme.
Entre estes, precisa ser destacado novamente o trabalho na fotografia e câmera
de José Roberto Eliezer, que com seu trabalho neste filme e em Hotel Atlântico
no seu currículo de 2009 insere seu nome de maneira decisiva no cinema brasileiro
atual como muito mais do que apenas um técnico competente, o que ele já se comprovava
há mais de 20 anos. Boa parte da marcante secura narrativa do filme deve-se ao
seu trabalho, que consegue dar ao mesmo tempo uma beleza e uma sutileza de linguagem
bastante particulares ao trabalho. Não é pouca coisa para um primeiro filme, um
dos melhores que vimos em alguns anos de cinema brasileiro. Outubro
de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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