Queime Depois de Ler (Burn After Reading),
de Joel e Ethan Coen (EUA, 2008)
por Francis Vogner dos Reis

O princípio da chacota

Queime Depois de Ler tem um princípio interessante que é o que faz de O Grande Lebowski, Fargo e Barton Fink filmes atraentes: o gosto por fazer da banalidade o princípio de uma série de situações de conseqüências perigosas e fins fatais. Só que tudo azeda quando ele se revela um exemplar do cinema dos irmãos Coen que parecia sepultado com a mudança substancial (e qualitativa) em Onde os Fracos Não Tem Vez. A força daquele filme residia principalmente em uma objetividade seca que concentrava o interesse na ação e que impedia, entre outras coisas, que o sarcasmo habitual dos irmãos Coen borrasse a maior parte do filme. Isso dava a seus personagens, planos e vazios, uma limitação e uma direção necessárias que só existe a partir de uma abordagem direta e essencial – apesar de que, na parte final, eles descarrilhavam para uma sucessão de equívocos, justamente porque os diretores – venenosos – escolheram arbitrariamente o que abandonar (o personagem de Josh Brolin) e o que acompanhar até o fim (o personagem de Bardem), desprezando o modo como os acompanhou até esta altura, preferindo a troça, típica do cinema deles.

Em Queime Depois de Ler, temos Osbourne Cox, ex-agente da CIA que decide escrever suas memórias. Sua esposa está tendo um caso com o agente federal Harry Pfaffer, que por sua vez passa a ter um (outro) caso com a funcionária de uma academia, Linda Litzke, mulher de meia idade frustrada sentimentalmente e que, junto com seu amigo Ted Treffon, faz chantagem com Cox por terem encontrado um CD com rascunhos das memórias do ex-agente da CIA. Mais do que brincar de quadrilha é com esse material que os Coen irão se esbaldar com todo interesse em tirar das situações o máximo do ridículo. O que está em questão é justamente a dimensão estratosférica que o mais prosaico do banal pode causar. É como se eles caçoassem do ponto de partida das tramas de espionagem e, ao invés de colocar personagens sisudos, conflitos de importância derradeira, os diretores preferissem transformar toda essa situação em uma ampla rede de equívocos.

Ninguém pode dizer que Joen e Ethan Coen não sabem o que fazem. Queime Depois de Ler é um exercício de demonstração clara e límpida de um cinema que apresenta, conscientemente, uma série de possibilidades, a partir do olhar, da marca, de uma dupla de cineastas que gostam de demonstrar extremo controle de todo um universo. Controle até demais, o que acaba por esgotar todas as possibilidades do que colocam em cena. É como se cada escolha narrativa de uma fração do filme - de um núcleo de personagens - topasse a certa altura com um bloqueio (do cineasta, da própria crença do que a narrativa propõe) , que exigisse a movimentação de uma outra fração do filme para socorrer a que se esgotou, e assim por diante. A cada bom achado (e o filme tem vários), eles usam, abusam, repetem e espremem até não sobrar mais nada. Abandonam alguns pelo caminho, dão um destino qualquer a outros dentro de uma rede de causalidades.

Um exemplo é o personagem de Brad Pitt que é engraçado e ridículo. Até ai nenhum problema. O problema surge a partir do ponto em que ele deixa de ser um personagem para se transformar em uma caricaturazinha grosseira. Ai não existe adesão dos cineastas à sua proposta, mas sim a indiferença de quem acha que aquilo é veículo de escárnio e de que o potencial das coisas reside na pura e simples chacota: a ficção, qualquer uma, depende da adesão do cineasta ao universo que propõe, por mais sórdido de seja. Os Coen são observadores isentos. É o limite do cinema deles.

Outubro de 2008

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