in loco - 43o festival de brasília
Dia 6: Políticas da forma
por Fábio Andrade

O Céu no Andar de Baixo, de Leonardo Cata Preta (Brasil, 2010)
Custo Zero, de Leonardo Pirovano (Brasil, 2010)


Os leitores desta cobertura já devem ter reparado o quanto questões de referência e derivação são frequentemente evocadas nestes textos, e ao fim da competição deste Festival de Brasília é possível detectar com clareza as marcas deixadas pela cinefilia na produção. A maior parte dos filmes em competição, entre curtas e longas, tem matrizes muitos específicas e fáceis de se detectar. A vontade de dialogar com suas influências é compreensível, especialmente em uma produção jovem, mas quando filmes passam a ser chamados levianamente de "ovnis"; ou quando "invenção" e "coragem" se tornam as palavras da vez em quase todos os discursos de apresentação, é preciso colocar certas coisas em perspectiva. Com a exceção de Transeunte, de Eryk Rocha - filme que dialoga visivelmente com a história do cinema, mas do qual não é possível apontar referências específicas em um primeiro contato, nem mesmo as que o diretor citou em debate -, os filmes apresentados em Brasília são de diretores que viram algumas coisas importantes no cinema e que propõem diálogos com elas, mas que, mesmo quando interessantes, ainda estão longe de oferecer uma proposta sólida e nova de cinema. Em geral, quando vemos uma penca de filmes sendo considerados obras de exceção, tais afirmações tendem a dizer mais sobre a falta de conhecimento dos autores com as quais os filmes dialogam do que propriamente de sua originalidade.

Amor?O Céu no Andar de Baixo, animação dirigida por Leonardo Cata Preta, é um bom exemplo dessa deformação celebratória. Pois, por mais que haja um cuidado visível com cada detalhe em quadro e uma constante impressão de pulsação interna mesmo quando o filme se concentra no estático, seu estilo não vai muito além da combinação da mistura de materiais e da predominância da voz over de um Don Hertzfeldt (embora o texto - em grande parte o que faz de Hertzfeldt um artista excepcional - seja de natureza bem menos particular) com o traço deformador de Sylvain Chomet. Como a animação é tomada muitas vezes como um nicho autônomo dentro do cinema, é bastante fácil que tais referências escapem ao repertório cinefílico do espectador, e que a técnica de Cata Preta seja tomada como inovação de estilo. O Céu no Andar de Baixo é um filme de inegável esmero técnico e de alguma desenvoltura na criação de universo, mas que tem fragilidades de dramaturgia consideráveis e uma leve tendência à pieguice - algo impensável, por exemplo, na obra do próprio Hertzfeldt. Dividido entre essas duas pontas, o filme está mais para um trabalho de aluno aplicado do que para uma obra realmente empolgante artisticamente. 

Custo Zero, de Leonardo Pirovano, tenta injetar fôlego no imaginário da violência carioca com uma variedade de texturas visuais, indo das cores ao preto e branco, passando por momentos de vídeo extremamente ruidoso que fazem lembrar o trabalho de Michael Mann em Miami Vice. Mas, além de ser usado sem maior critério, o esforço material se perde como pequeno índice visual em um filme que na verdade parece mesmo querer desfilar seu vocabulário de bandidagem, em um registro que não é nem exatamente realista, nem suficientemente estilizado. Se é difícil pensar em um cinema de gênero com verve textual sem lembrar dos primeiros filmes de Quentin Tarantino, é igualmente evidente que Tarantino combina sua dedicação aos diálogos com um domínio preciso dos tempos e da mise en scène, além de um talento raro em seus enquadramentos. Custo Zero trava em sua verborragia, tomando os clichês de representação como se eles fossem um trabalho de iconografia, e aderindo às convenções de gênero sem maior inventividade.

Vigias, de Marcelo Lordello (Brasil, 2010)

Em seu primeiro longa, Macelo Lordello dá prosseguimento a um trabalho bastante particular de mapeamento da violência introjetada no cotidiano, e manifesta por vias menos pensadas pelo cinema brasileiro. N. 27, seu brilhante curta anterior, usava o ambiente escolar para pensar manifestações de constrangimento gerada pela violência social, muito antes de o bullying se tornar a discussão da rodada. Vigias, seu primeiro longa, é um documentário que já se explica em seu título: Lordello e equipe acompanham a rotina de homens que trabalham como guardiões de prédio de classe média em Recife. O filme alterna de uma personagem à outra como partes integrantes de uma mesma noite, com alguns depoimentos que acompanham a predominante observação.
 
Amor?Por sua simplicidade e contenção visual, é bastante provável que Vigias passe sem que suas operações sejam percebidas. Toda a construção do filme - das estratégias de aproximação à montagem, passando por uma fotografia bastante discreta de Ivo Lopes Araújo - tenta reconstituir um certo ritmo da noite, no qual os pequenos acontecimentos são amplificados pelo silêncio das ruas, e que depende essencialmente que filme e espectador respirem em um mesmo compasso. Com a percepção aguçada pela imersão no espaço e no tempo do filme, Vigias demanda atenção justamente ao que se esgueira em sua própria escuridão, mas que é dado a ver justamente por esse estado desperto de quem se coloca em vigília.

Em primeiro lugar, há um comentário formal: Vigias atravessa a noite para chegar ao dia, e ambos os momentos são pensados metaforicamente. Se o filme se coloca de forma crítica à obsessão com segurança de Vigias, é expressivo que a chegada do dia não interrompa o filme, mas os leve a acompanhar suas personagens no trajeto do trabalho para a casa. Noite e dia são pensados como oposições simbólicas de escuridão e clareza, e o filme faz justamente esse trajeto de um para outro, um movimento de uma sensibilidade à outra, do ocultamento à iluminação. Se em dado momento um breve encontro da equipe com uma das administradoras de um prédio deixa claro que a equipe só tivera acesso por a responsável ser amiga da mãe de uma das pessoas da equipe, isso é contrastado ao eloquentíssimo plano final, em que a equipe de filmagem chega à casa de um dos vigias que, deixando a porta aberta, vai buscar sua esposa para apresentá-la a seus novos amigos. Mais do que um elogio bucólico e canalha à simplicidade, Vigias opõe dois extremos de comportamento para se fazer perguntas essenciais: o que deu errado? O que a obsessão com segurança garante? O quanto ela aproxima e o quanto ela separa as pessoas? Como ela influencia nossa rotina e, principalmente, as pessoas que somos social e internamente?

Tais perguntas não serão respondidas, mas é especialmente interessante ver como Marcelo Lordello as levanta sem nunca violentar o filme com sua arbitrariedade. Se N. 27 era um filme admirável muito por suas questões não superarem sua vontade de cinema - por, ao contrário, motivá-la -Vigias cria um sistema parecido entre tema e cinema para que ambos cheguem ao espectador com maior força. Em dado momento, quando o filme passa enfim da noite para o dia, temos um plano de um rádio - um elemento que conecta as personagens do filme em um belo falso raccord - em que o câmera faz uma correção de íris. O plano parece um tanto deslocado, mas é interessante pensá-lo como ilustração do tipo de estratégia cinematográfica que o diretor usa para transmitir coisas muito concretas - no caso, a necessidade de se "ajustar" o olhar (e a perspectiva)às mudanças de luminosidades e de realidades dentro do filme.

As operações cinematográficas levantam questões que extrapolam o cinema: vemos um dos porteiros fazendo sua ronda por meio das diversas câmeras de vigilância que monitoram a movimentação interna de um prédio, mas em vez de isso ser reduzido a um mero jogo de linguagem, o recurso abala a estrutura social que coloca todo aquele aparato em serviço: vigiar é ser vigiado, e a relação entre empregador e empregado é também uma maneira de manter o outro por perto, sob o julgamento de nossos olhos. Embora não seja tão desnorteante quanto N. 27 (questão de natureza, antes de ser de realização), Vigias leva o cinema pernambucano a um lugar que ele vem aspirando há algum tempo com diversos filmes, mas que até então escorria pelas frestas deixadas entre matéria e forma (como sempre, conceitos indissociáveis, mesmo que muitas vezes tratados como opostos: não há matéria sem forma): ser um filme verdadeiramente político.

Dezembro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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