in loco - 43o festival de brasília
Dia 5: Cinema imitado
por Fábio Andrade

A Mula Teimosa e o Controle Remoto, de Hélio Vilela Nunes (Brasil, 2010)
Café Aurora, de Pablo Polo (Brasil, 2010)


O quinto dia do Festival de Brasília foi marcado por filmes de encontros, e dos ruídos produzidos nas relações entre duas pessoas. Dos três filmes apresentados, não há dúvidas que A Mula Teimosa e o Controle Remoto, de Hélio Vilela Nunes, foi o melhor da noite. O filme consegue falar às crianças sem nunca deixar de ser preciso na construção visual e narrativa, impedindo que sua mensagem nobre e politicamente correta seja um entrave às suas articulações de cinema. Há momentos em que a opção por não usar falas parece por demais arbitrária, enclausurando uma fábula que se quer realista nos momentos em que as falas seriam naturais, mas acabam suprimidas por essa arbitrariedade prévia. Em ano em que a competição de curtas estava especialmente fraca (à exceção de Contagem, os melhores filmes do Festival conquistavam mais por momentos isolados de inventividade do que por um equilíbrio mais amplo), A Mula Teimosa e o Controle Remoto ganha destaque por sua inabalável correção - o que não deixa de ter, também, um lado trágico.

Café Aurora, de Pablo Polo, foi uma introdução bastante ilustrativa para todos os problemas que viriam em sequência, com o longa de João Jardim. Em um primeiro momento, há índices suficientes de sofisticação para se criar algum interesse: a fotografia usa ostensivamente o foco pontualíssimo para criar quadros de alguma força gráfica; o desenho de som cria bolhas dentro das cenas que geram um certo estranhamento; a ação se desenrola lentamente, deixando pontas soltas de alguma curiosidade. O problema é que tudo aquilo que parece deliberação aos poucos se revela de absoluta perversidade mimética: os desfoques são suscitados pela cegueira de uma personagem, e o tratamento sonoro pela surdez de um outro. Café Aurora tem em sua aparente sofisticação formal sua maior evidência de preconceito, algo que ganha requintes de crueldade lírica na cena final - em que a personagem cega coloca uma venda sobre os olhos do rapaz surdo. E que isso nos seja revelado aos poucos, com requinte e sofisticação dignas de um Ensaio sobre a Cegueira, só reforça o quanto o curta foi o que de mais baixo se viu em Brasília este ano.

Amor?, de João Jardim (Brasil, 2010)

Amor? é um documentário reencenado, no qual atores recontam histórias coletadas para o filme de pessoas que tiveram relações amorosas que elas consideravam violentas e destrutivas. É inevitável que tal procedimento traga à lembrança Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, e a comparação é ponto justo para se medir as diferenças entre os filmes. Pois o que fazia de Jogo de Cena uma obra tão instigante era, entre outras coisas, a maneira como a construção se revelava pela desconstrução: se ficamos impressionados com o depoimento interpretado por Andréa Beltrão, é revelador que no momento seguinte Coutinho converse com ela e pergunte onde se deram as conexões emocionais da atriz com o texto, e em que momento a encenação declarada conseguia entrar em contato com a "verdade" do depoimento. Como sempre, o interesse de Coutinho se concentrava na potência de um encontro entre duas sensibilidades.

Amor?Em Amor?, ao contrário, não há espaço para nada disso. Temos apenas atores reencenando depoimentos que o filme diz serem verdadeiros, em certos momentos usando letreiros que atestem a veracidade da encenação: foi exatamente assim que aconteceu no depoimento original. O que o filme ganha, portanto, com a encenação? Nada, absolutamente nada. Não há motivo para se recorrer a atores quando o que está em jogo é apenas a força do que é contado, e não ajuda que a justificativa dada pelo filme faça pouco sentido e que suas questões éticas de exposição de terceiros já tenham sido resolvidas mesmo pelo pior telejornalismo. Ao contrário, trocando depoentes por atores perde-se apenas a força do corpo em si, da conexão entre as situações contadas e o rosto que as viveu. Não há troca possível entre o ator e o texto quando o que está em jogo é a verossimilhança, e Amor? se esconde atrás de procedimentos de linguagem aparentemente sofisticados na esperança de que um filme de pretensões absolutamente rasteiras e um moralismo de falsas questões (existe amor sem violência?) se potencialize como um produto artístico de alguma relevância.

Mas o que vemos na monotonia de Amor? é exatamente o contrário: em seu afã pela aparência de sofisticação, os depoimentos no filme têm menos força do que as experiências compartilhadas no final de cada episódio das novelas de Manoel Carlos. No fim das contas, o que João Jardim se esforça é fazer de histórias violentas algo palatável para o público do GNT (canal produtor do filme), assim como uma cena de nú de Eduardo Moscóvis ganha uma levantada de perna providencial no momento exato, naquela velha especialidade do mau cinema (tão bem aproveitada por sujeitos como Paul Verhoeven e Brian De Palma) que é o nú frontal lateral. Amor? é cheio dessas dissimulações aberrantes - de "Carinhoso" tocada ao sax a cenas em super 8 que façam toda aquela suposta dor parecer mais "poética" - que resultam em sua maior ironia: com a desculpa de preservar as pessoas, seus joguetes de linguagem e encenação são os sintomas de maior desrespeito para com as histórias de vida compartilhada por suas personagens. A maneira solene e palatável que o filme usa para tentar dourar esse desrespeito só reforça o quão falsa é a sua ingenuidade.

Novembro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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