in loco - 43o festival de brasília
Dia 4: Em transformação
por Fábio Andrade
Matinta, de Fernando Segtowick (Brasil, 2010)
Falta de Ar, de Érico Monnerat (Brasil, 2010)
No quarto dia da competição aqui em Brasília, foram apresentados mais dois curtas que demonstram perceptível interesse em adaptar o cinema de gênero às questões e ao imaginário local: Matinta, de Fernando Segtowick, e Falta de Ar, de Érico Monnerat. Assim como Contagem, de Gabriel Martins e Maurilio Martins, são ambos filmes que trabalham a partir de convenções clássicas do cinema de gênero (no caso, o cinema de horror e o de ação, respectivamente) dentro de diferentes perspectivas locais (Pará e Brasília). Mas se em Contagem essa atenção à própria vizinhança servia como impulso de atualização e frescor, isso só acontecia por os diretores dominarem plenamente as questões mais básicas e materiais que dizem respeito ao próprio gênero: antes de ser temperado por sotaques e expressões locais, Contagem é um filme filmado, montado e articulado de forma inteligente, com uma atenção precisa na colocação da câmera, no tempo do desenrolar das ações e no momento do corte. Parte da ambição do cinema de gênero nasce do conhecimento e do domínio profundos do que já foi feito antes, para que soluções possam ser pensadas de maneira a recuperar essa sempre fugidia vitalidade. Não é esse, porém, o caso de ambos os filmes aqui em questão.
Matinta,
de Fernando Segtowick, parte da promissora intenção
de trazer o imaginário místico paraense para o cinema.
No caso do cinema de horror, tal vontade é tão fecunda
quanto pouco explorada, e seus resultados são não
raro surpreendentes - basta lembrar do excelente Mangue Negro,
filme de zumbis capixaba dirigido por Rodrigo Aragão. Mas,
passados os primeiros minutos, Matinta parece sensivelmente
perdido no manejo dos planos, por vezes apelando para uma montagem
paralela extremamente pobre, por outras cortando qualquer possibilidade
de climas com jump cuts e saltos em reverse
que parecem tirados da saga Crepúsculo. A gratuidade
da mise en scène e a dificuldade em estabelecer
um tom para o filme desperdiçam qualquer possibilidade
de engajamento - algo essencial para um gênero tão
dependente da construção de climas e atmosferas,
que por vezes pode dispensar qualquer âncora narrativa,
como em As Sombras, de Marco Dutra e Juliana Rojas. Não
há contribuição local ou manifestação
de identidade capaz de salvar um filme mal realizado, e em Matinta
é possível sentir o filme escorrendo pelas frestas
de cada corte mal pensado.
Já
Falta de Ar, de Érico Monnerat, sofre de mal contrário.
Pois se há uma força inegável na decupagem
das cenas de tortura - momento em que o filme cresce, mesmo que
seja pelo mal estar - ela é desperdiçada em uma
trama moralista, com uma montagem paralela de associações
por vezes grotesca. Não há nada de errado em se
levantar questões morais sobre o quão incólume
os torturadores podem seguir com suas vidas, largando os cadáveres
pelo caminho, mas quando isso vem a reboque do simples fascínio
(em si nada condenável) pelas diversas maneiras que pode-se
filmar um sujeito sendo afogado em uma lata d'água, é
inevitável que o "grande tema" faça uma
sombra nefasta sobre as intenções vagabundas. A
culpa é o inevitável afterstaste. Falta
de Ar está mais para Matteo Garrone do que para Johnnie
To, e isso só pode significar que o cinema sai perdendo.
O Céu sobre os Ombros, de Sérgio Borges (Brasil, 2010)
O
Céu sobre os Ombros, de Sérgio Borges, se alinha
a Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro, e Avenida
Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro, em uma mesma
estratégia, surpreendentemente recorrente para filmes separados
por tão pouco tempo: partir de um material documental para
uma montagem que adere às convenções da ficção,
superando as questões do próprio documentário
ao ficcionalizar as personagens. O específico do documentário
- essencialmente uma questão ética, de quem lida
com pessoas que seguirão com suas vidas fora do filme -
é trocado por uma apropriação que tenta tirar
deste contato com o real apenas seu impulso de autenticidade.
Três personagens são acompanhados pela câmera
e reunidos em uma montagem aqui realmente paralela - em trajetórias
que nunca se cruzam -, em uma escolha que se assume absolutamente
deliberada: não há nada que aparentemente conecte
as três protagonistas a não ser o olhar do próprio
filme e seu contato com a mesma câmera. A similaridade entre
os três filmes não pára por aí: todos
eles são norteados por uma estratégia de filmagem
em tableaux, com enquadramentos rigorosos e fotografia
de expressiva plasticidade (aqui, de Ivo Lopes Araújo,
mais uma vez surpreendente em suas escolhas de cor e luz), investindo
em uma narrativa que é menos calcada em sua própria
linearidade, e mais no fluxo e orquestração dos
tempos e deslocamentos internos de cada cena. Em todos os casos,
o limite dos filmes é o limite da proposta: como encontrar
uma estrutura de dramaturgia onde ela é imprevista? É
possível articular esses sentidos sem violentar a autenticidade
da experiência? - a propósito, uma certa aleatoriedade
que servia como primeiro ponto de atração do filme
por aquelas personagens e situações. O Céu
sobre os Ombros, nesse sentido, toma uma decisão bastante
feliz, que tira do acaso a responsabilidade pela dramaturgia:
é um filme não somente sobre determinados personagens,
mas uma afirmação de um ethos em relação
ao conceito de "personagem" cinematográfico.
Pois
o que é surpreendente no filme de Sérgio Borges
é a maneira como a instalação no real é
constantemente surpreendida por personagens que se desdobram incessantemente
em cena (e, não à toa, são pessoas que mudaram
seus próprios nomes), levando a encenação
para lugares que antes não pareciam possíveis, entortando
nossa percepção sempre que achamos que já
os conhecemos. É isso que há de comum aos três
protagonistas do filme: sua capacidade não exatamente de
reinvenção para a câmera, mas de revelar a
incapacidade do cinema de captá-los em toda sua multiplicidade,
de tipificá-los para um roteiro. A busca no real se justifica
justamente nessa extrapolação da vida em relação
ao cinema: um travesti se revela um estudioso sobre sua própria
prostituição; um monge Hare Krishna que é
skatista, pichador de muro e devoto do Atlético Mineiro;
uma figura pictórica de um homem que anda pela casa vestindo
apenas um par de meias cor-de-rosa se revela um escritor e pai
de família; etc, etc etc.
Se Morro do Céu e Avenida Brasília
Formosa esbarravam nas limitações de seu próprio
projeto (em um caso, filmando a busca por um tema; no outro, provocando-o
em conexões que o mundo não oferecia), O Céu
sobre os Ombros avança não só ao tematizar
essas próprias limitações, mas também
ao promover um encontro um tanto improvável entre o cinema
de modulações que vemos em Adeus ao Sul,
de Hou Hsiao-hsien, e Ossos, de Pedro Costa (filme aqui
muito evocado pela plasticidade pálida de seus tons, embora
eles sejam sensivelmente mais quentes do que a palheta de cinzas
do filme de Pedro Costa) com o ethos realizador de Eduardo
Coutinho: não há ser humano que se permita reduzir
aos limites de uma personagem. É justo, portanto, que as
personagens e o filme expressem isso, apontando sempre para fora,
esbarrando nos limites inventados do quadro, dos cortes e da duração
- por vezes com resultados um tanto frustrantes para um filme
de dramaturgia, especialmente claro na ausência de um final:
O Céu sobre os Ombros não acaba; pára.
Neste
encontro entre o controle e o descontrole, O Céu sobre
os Ombros faz diversas operações de re-significação
que destacam essa relação, seja por meio da montagem
ou do uso da música - especialmente forte quando salta da
diegese para a não-diegese, no plano em que Murari Krishna
anda de skate pelas ruas da cidade. Em um dos momentos mais bonitos
do filme, uma panorâmica por uma paisagem aos poucos a re-situa
como um papel de parede no serviço de atendimento onde trabalha
Murari Krishna, que vemos sentado frente ao falso parque. Em um
único plano, Sérgio Borges realiza o jogo de dentro/fora
que Tiago Mata Machado expõe como conceito, e que isso aconteça
no contato com um cenário real (e não construído
para o filme) só reafirma a força do procedimento.
Novembro de 2010
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