in loco - 43o festival de brasília
Dia 2: O particular universal
por Fábio Andrade
Angeli
24 Horas, de Beth Formaggini (Brasil, 2010)
Contagem, de Gabriel Martins e Maurilio Martins
(Brasil, 2010)
Na segunda sessão da competição
nacional do 43o Festival de Brasília, a programação
reuniu três filmes que misturam registros dissonantes e
buscam uma harmonia - quando não uma expressão de
personalidade - na promoção desses encontros. Angeli
24 Horas, de Beth Formaggini é um documentário
tradicional de depoimentos - no caso, todos do próprio
Angeli, cartunista e protagonista do filme - pontuado com imagens
em time lapse da cidade de São Paulo, e de pessoas
na rua, encarando a câmera - recurso que, conjugado à
fala do cartunista, traduz visualmente sua estratégia de
pinçar personagens de seu cotidiano na cidade. A opção
é o maior sopro de vitalidade no filme que, a rigor, é
muito dependente da força das falas do próprio Angeli,
e um tanto previsível em sua aderência formal (rock
na trilha-sonora, ampliação das tiras do cartunista,
registro de um dia de trabalho, etc). Com a sequência de
interrupções da filmagem em time lapse,
o filme destaca a proximidade em modalidades artísticas
que por vezes parecem mais distantes; ele volta a ser percebido
como uma tira de quadros em movimento, não muito diferente
do movimento da própria história em quadrinhos.
Porém, a repetição sistemática e pouco
variável da estratégia se arrasta ao longo dos 25
minutos de projeção, perdendo dramaticamente sua
força a cada nova reiteração. Angeli
24 Horas acaba apenas como um registro - em certa medida
estilizado, mesmo que de maneiras um tanto banais - da fala de
seu personagem, e os limites de suas virtudes não são
muito mais amplos do que os de uma reportagem de televisão.
Já
Contagem, de Gabriel Martins e Maurilio Martins, tem
como centro dilemas propriamente cinematográficos: uma
narrativa de estrutura labiríntica; um trabalho de gênero
fortemente calcado em suas convenções; um gosto
pelo diálogo e pelo texto que convergem na força
dos atores em cena; um conjunto de referências notavelmente
cinéfilo; etc. Mas há algo de especial em Contagem
que fica claro já em seus primeiros planos: ao mesmo tempo
em que o flerte com o gênero e o cuidado de mise en
scène sugerem uma estilização na construção
de climas não muito distante do Cronenberg de Marcas
da Violência, no momento seguinte uma das personagens
sai à rua e a câmera cola em sua nuca, evocando a
urgência de Rosetta ou O Filho, dos irmãos
Dardenne. Que a dupla de diretores consiga passar sem qualquer
resistência entre referências tão díspares
quanto Cronenberg e os Dardenne só faz reforçar
o quanto de liberdade o filme se permite, e o quanto de inteligência
fundamenta suas opções. Se ontem mesmo escrevi sobre
a tentativa de "conciliar o inconciliável" em
A Alegria, Contagem vai um tanto mais adiante: revelar
conciliável o que antes nos parecia inconciliável.
Pois
Contagem não vive do choque dos registros, mas
sim de sua orquestração. Ao mesmo tempo em que temos
um filme de algum nível de estilização e
controle, temos atores que vibram livremente em cena, em interações
cheias de vida que dobram o jogo estrutural do filme, produzindo
uma ambiguidade entre as forças em tela e as que decidem
os limites dessa tela - os corpos em cena e o olhar dos diretores.
Esse interesse que não exclui a câmera nem o que
está diante dela leva àquela que é talvez
a maior virtude de Contagem: é, ao lado de Fantasmas
(filme de André Novais Oliveira protagonizado pelos próprios
diretores de Contagem, sócios de André
na produtora Filmes de Plástico), um dos raros filmes no
panorama atual a perceber o quão envolvente pode ser um
sotaque, uma maneira particular de falar, uma gíria ou
expressão que apreendemos sem reconhecer. Contagem
incorpora essa sujeira local a uma estrutura de thriller
universal, tal como Scorsese e os hábitos de sua Little
Italy. E melhor: o faz não por um bom mocismo antropológico
do "registro" dessas falas, mas sim por perceber o quanto
ela pode trazer de novo, vivo e vibrante ao "mais do mesmo"
- tarefa constante e primordial dos cineastas de gênero.
Transeunte, de Eryk Rocha (Brasil, 2010)
Transeunte,
de Eryk Rocha,vai, inevitavelmente, levantar o cadáver
insepulcro da discussão "ficção X documentário".
A questão aqui, porém, é menos de tensão
de registros, e mais de estilo: a câmera solta passeia pelos
ambientes sem decupagem definida, e se ocupa apenas de dar conta
de Expedito (Fernando Bezerra), um senhor de idade avançada
que, sozinho no mundo em estado de luto, cumpre as tarefas diárias
acompanhado de seu radinho de pilha e seus fones de ouvido. O
filme começa com um passeio ao lado do cemitério.
A câmera corre paralelamente às grades que isolam
o local, e as breves interrupções das barras de
metal se aproximam do flickering de um rolo de película
rodando. Ao fundo, o barulho das hélices de um helicóptero
faz pensar no ruído do motor de um projetor de cinema.
Expedito sai do mundo dos mortos para adentrar o filme, sensação
que permanece pela impressão de invisibilidade da personagem
ao longo da primeira metade de projeção. Se essa
breve sinopse poderia se configurar como anúncio de uma
odisséia piedosa e, por isso mesmo, pessimista pela vida
de um pobre diabo, aos poucos (e tudo neste filme acontece aos
poucos) Transeunte se revela algo bastante diferente
disso. Antes de mais nada por o filme ser, à sua própria
maneira, uma adaptação (talvez inconsciente) de
Ulisses, de James Joyce: a cidade se desdobra em uma
polifonia caótica de vozes, ruídos e rostos, com
uma montagem que organiza - por rimas, ritmos ou significado -
o caos do próprio mundo, sem aniquilar sua irregularidade.
Mas ao contrário de Harold Bloom, pária passivo
por natureza, Expedito é o editor ativo de sua própria
vida. É ele quem decide quando interromper uma conversa
entreouvida recolocando os fones no ouvido que promove a montagem
do cotidiano, criando associações significativas
mesmo quando aleatórias. Uma canção dá
continuidade a uma frase, como um plano é montado com um
contraplano. Expedito é solitário, mas não
sozinho; sua solidão é ativa, seu olhar é
soberano e suas decisões determinam seus próprios
sentidos. Ele é vivo como poucos personagens do cinema
brasileiro contemporâneo o são.
Essa
solidão, porém, é compartilhada. Se os fones
de ouvido se tornaram um símbolo fácil de recolhimento
e alienação, esse sentido é invertido radicalmente
em uma única cena do filme: após andar por toda
a cidade ouvindo músicas pelo rádio, Expedito pára
em um bar onde um conjunto de seresta se apresenta. Naquele momento,
o gesto de colocar os fones de ouvido (agora desnecessários)
é absolutamente re-significado: vemos as pessoas que cantam
e tocam as canções. Escutar cada música,
cada locutor, cada ouvinte que liga para compartilhar causos e
experiências com seu programa de rádio favorito é,
para Expedito, travar uma relação. A edição
de sua própria vida depende do acaso, das falas do locutor
de rádio, das músicas que o programador decidiu
tocar. Depende, principalmente, que haja alguém do outro
lado. Toda memória é questão de convivência.
Transeunte se firma, assim, como o
trajeto do virtual para o concreto; a percepção de
que, assim como as canções só existem se cantadas
por alguém, Expedito só se torna personagem quando
observado pelo filme - como os vários refletores do estádio
de futebol se tornam uma única faixa de luz com um simples
desfoque de câmera. Eryk Rocha cria um filme que, em sua imperfeição,
consegue se reconfigurar continuamente ao longo da projeção,
demonstrando candura onde parecia haver dureza, vontade de vida
no que já parecia morto, e desejo de ficção
quando todos os índices superficiais parecem apontar o contrário.
Como em Contagem, o cinema é a busca do universal
no particular, mas também o seu reverso: Expedito sai da
massa difusa de velhinhos solitários do Centro do Rio de
Janeiro e se torna protagonista de um filme; mas seu protagonismo
só faz sentido se o filme lhe devolver à universalidade,
lhe fizer reconhecível, lhe fizer estampa de seu próprio
anonimato. Não à toa, as grades do cemitério
serão retomadas bem mais à frente no filme, com o
mesmo flickering dos primeiros planos; mas dessa vez, são
as grades de um parque, com árvores que resplandecem vivas
na composição. Expedito sai do mundo dos mortos e,
na cintilação dos fotogramas a correr frente à
luz do projetor, ganha vida, se torna "um", para então
- montador de sua própria vida - seguir, com o último
plano, caminhando para dentro do filme, permanecendo indivíduo
além da inevitabilidade dos créditos finais.
Novembro de 2010
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