in loco - 43o festival de brasília
Dia 1: Fazes de conta
por Fábio Andrade

Não deixa de ser animador ver o 43o Festival de Brasília começar com uma sessão um tanto atípica para o panorama atual e histórico do cinema brasileiro. Afinal, o primeiro dia de competição foi dedicado a três filmes que abraçam o fantástico como força motriz, algo que, mesmo com as intermitentes exceções (O Fim da Picada, de Christian Saghaard, por exemplo), permanece um tanto incomum na produção cinematográfica brasileira. Com exceção maior ao trabalho de José Mojica Marins - cineasta fantástico que trabalha em gênero distante dos filmes em questão e que influencia diretamente um nicho de diretores de sensibilidades não exatamente próximas das aqui apresentadas - mesmo os melhores filmes brasileiros a mergulhar neste pântano (pensemos em Amuleto de Ogum, de Nelson Pereira dos Santos, por exemplo) normalmente o fazem pela via do misticismo, incorporando o fantástico a estratégias de um cinema convencionado por uma idéia difusa de "realismo". Passada essa animação a priori, a ausência de uma tradição cinematográfica fantástica em língua portuguesa é sentida fortemente aqui: Cachoeira, Fábula das Três Avós e A Alegria sofrem, de maneiras diferentes, de uma sensível falta de referências ao saltar do realismo cotidiano para o fantástico, esbarrando em dificuldades por vezes intransponíveis ao tentar estabelecer esse outro registro e encontrar o tom apropriado de encenação.

Cachoeira, de Sérgio José de Andrade (Brasil, 2010)
Fábula das Três Avós, de Daniel Turini (Brasil, 2010)

CachoeiraDos três filmes exibidos, Cachoeira, de Sérgio José de Andrade é o que mais facilmente se insere nessa espécie de "realismo místico" brasileiro. Seu viés fantástico é justificado diegeticamente pela bebida alucinógena que os jovens índios tomam - uma mistura a base de cachaça que simboliza toda uma miscigenação cultural das novas gerações indígenas - enquanto ouvem rock na floresta e tomam parte de um ritual que termina em uma morte simbólica. A nova tradição - não à toa, trazida à aldeia por um jovem mestiço, de origem urbana -é contraposta à narração de um dos velhos índios da tribo, em um recurso que acentua a questão central do filme da desconexão dos mais jovens com sua tradição, em busca de uma cultura que lhes pareça própria.

Entre Os Mestres Loucos, de Jean Rouch (por uma fotogenia do assombro, calcada na adaptação de uma cultura de viés imperialista aos hábitos locais), e Plataforma, de Jia Zhang-ke (pela maneira ambivalente que o filme lida com o velho binômio tradição/modernidade), é surpreendente que Cachoeira emperre justamente quando dá de frente com sua própria tradição cinematográfica e precisa fazer a estória andar. A inegável força dos planos dos índios ouvindo heavy metal entre as árvores, da narração do pajé e dos planos do garoto que corre pela mata se dissipa totalmente sempre que um diálogo se faz necessário, e que os atores são exigidos para além de sua presença. Embora Cachoeira tome parte em um jogo entre o místico e o real bastante caro ao cinema brasileiro, o filme ganha força sempre que se afasta dessa tradição em busca de imagens que traduzam essa sensação de encontro com o novo que o filme trabalha e tematiza. Por outro lado, a necessidade de pontuar essa potência com uma dramaturgia mais convencional esbarra na pressa e na falta de traquejo em encenar o clássico, em colocar dois atores em contato e criar, com isso, uma relação que pareça crível.

Fábula das Três AvósFábula das Três Avós sofre de problema semelhante, embora suas ambições sejam bastante distintas. Pois Daniel Turini busca inspiração sem quaisquer paralelos no cinema brasileiro: estamos próximos da infância estilizada de um Tim Burton, com a mesma predileção pela frontalidade, pelas cores sombriamente anti-naturais, pelas lentes mais abertas e por um cuidado expressivo com o decór, com as paredes de estampas geométricas, os objetos de cena precisamente colocados e valorizados pelo enquadramento em scope. Não há dúvida, portanto, que Turini conhece bem suas influências e sabe trabalhá-las com alguma habilidade. Só que o que impede a adesão a Fábula das Três Avós é justamente, de novo, a falta de tom ao inserir os atores nesse universo. A vontade de conto de fadas se dilui em atuações que não são naturalistas nem estilizadas o suficiente, e que se perdem na falta de precisão de um teatrinho para crianças. Entre o rigor visual e a imprecisão de encenação, Fábula das Três Avós é um filme que não chega a dar liga.

A Alegria, de Felipe Bragança e Marina Meliande (Brasil, 2010)

Não há dúvidas que o nome de Apichatpong Weerasethakul será mencionado mais a torto do que a direito sempre que se ouvir falar em A Alegria. Não é por menos: os diretores incluem o realizador tailandês em seus agradecimentos especiais nos créditos finais do filme, criam cenas à beira do rio que fazem lembrar as de Blissfully Yours, embrenham-se em uma floresta à Mal dos
Trópicos, e ainda enchem o filme de travellings acompanhados de drone music que resgatam uma das principais marcas de estilo de Apichatpong. Da mesma maneira, A Alegria traz também referências mais discretas a M. Night Shyamalan (há cenas que lembram A Dama na Água e um monstro marinho que fala a mesma língua do ET de Sinais) e Tsai Ming-liang (a jaca é filmada como um equivalente brasileiro das comidas exóticas que vemos em Goodbye Dragon-Inn e O Sabor da Melancia, por exemplo).

O problema nessas três matrizes está justamente na tentativa de conciliação do inconciliável: Shyamalan e Tsai Ming-liang são cineastas de representação clássica, praticando exatamente a organização artística que Apichatpong Weerasethakul abole em seus filmes, na justa atitude que os torna tão originais. Filmes como Sinais ou O Sabor da Melancia são sistemas simbólicos fechados, mais herméticos no caso de Tsai (mas que se abre facilmente uma vez que o espectador percebe o que cada objeto de cena simboliza dentro desse sistema), mas igualmente sistemáticos em Shyamalan (lembremos como as peças se encaixam ao final de Sinais, e como cada elemento narrativo tem função precisa para se chegar ao desfecho). Em Síndromes e um Século, ou qualquer outro filme de Apichatpong, temos o exato reverso: os signos não se atrelam a significados específicos, transformando-se dentro de uma mesma cena e criando um sistema simbólico sempre fluido, mais calcado na relação entre os signos do que na articulação dos significados.

A AlegriaQue Felipe Bragança e Marina Meliande misturem referências de procedimentos antagônicos é menos um problema em si, e mais um sintoma das fragilidades de A Alegria: há pretensão de profundidade em uma adesão que é, no fundo, puramente superficial. Trocam-se monges budistas por bate bolas, melancias por jacas, tigres por monstros marinhos, mas não se leva das matrizes o que elas têm de significativo por trás da aparência. Apichatpong é resgatado somente por sua estranheza, mas em A Alegria ela é reduzida ao quirky, sem qualquer traço de desestabilização ou violência.

Pois se há algo de realmente extraordinário no cinema de Apichatpong Weerasethakul é a maneira como ele usa esses mesmos signos para dar cabo a processos muito mais profundos: não só filmar uma transformação de homem em tigre, mas promover essa mesma mudança na própria forma do filme, na maneira como um signo reaparece completamente re-significado em pontos diferentes de uma mesma história, e de que uma perna protética passa a ser um lugar para se guardar uma garrafa de bebida, sem nunca deixar de ser uma prótese. Uma história de amor pode se tornar uma história de horror; um bucólico conto religioso se transforma em ficção científica; um boy meets girl à beira do rio se revela uma jornada sensorial, filmando o tato infilmável, o toque e sua consequência. Em A Alegria, a relação com o cinema de Apichatpong Weerasethakul é ironicamente iconográfica; irônica justamente por se tratar de um diretor que rechaça fortemente a estaticidade que transforma os signos em ícones. Tudo é fluido no cinema de Apichatpong; não há citação possível. A Alegria, porém, se quer primo-próximo de Mal dos Trópicos, mas também filme de super-heróis, o mais iconográfico dos gêneros.

A AlegriaMas não é pelas citações a Apichatpong Weerasethakul - voluntárias dentro do filme e que confundirão os olhares mais superficiais - soarem equivocadas que A Alegria é um filme problemático. É apenas necessário afirmar o que ele não é, embora faça parecer ser, para se chegar ao filme com os olhos limpos das filiações cinéfilas apressadas. A Alegria leva adiante o mesmo olhar dedicado ao universo adolescente no coletivo Desassossego, apresentando diversos dos mesmos problemas, e algumas virtudes que o superam. Os traços de estilo permanecem - o mesmo gosto pelo jogo de palavras; as atuações posadas; o trabalho de reapropriação de gênero; o encontro do cotidiano com a possibilidade de extravasá-lo no fantástico - e são ostentados de forma a gerar todo tipo de implicância. A implicância, porém, interessa muito pouco como crítica.

Felipe Bragança e Marina Meliande aprofundam seu mergulho em um imaginário afetivo carioca bastante conectado à sensibilidade de parte do Rio de Janeiro (cidade na qual o filme é situado literal e imageticamente), com sua latência rosada, sua fala mansa sua eterna vontade de potência. A questão é menos a de se acreditar ou não nesse mergulho, e mais de questionar o próprio impulso: quando não há possibilidade de violência, é possível haver arte? Os jovens de A Alegria sorriem, mas não riem; sangram, mas não se machucam; dançam sempre de olhos abertos; falam baixinho e sem qualquer modulação, amando e odiando como zumbis. O que falta, porém, é justamente a distância crítica do gesto artístico: A Alegria não se permite irromper em berros, como A Fuga da Mulher-Gorila. O filme se irmana aos personagens não pelo afeto, mas pela impotência. Como em Desassossego, a violência é encenada, acontece diante da câmera (gesto clássico para um filme de referência moderna), mas nunca contamina o filme em sua relação com o espectador. E se não há violência possível, resta à arte girar em torno de sua própria construção e, como a protagonista do filme, descobrir que é capaz de atravessar paredes para ao fim não sair de seu próprio quarteirão, como se a potência tivesse serventia descolada do gesto.

A AlegriaA Alegria se perde muito nessa monotonia voluntária em nome de sua própria poesia. Há momentos, porém, em que o filme toma rumos um tanto inesperados e ganha vida considerável. Em um deles - sem dúvida a melhor cena do filme - os alunos de uma mesma turma de colégio se unem após a protagonista ser repreendida por usar o celular em aula, e criam um leve motim imitando com a boca o barulho de celulares vibrando. Embora esteja em pleno acordo com o espírito do filme, a afronta silenciosa ganha força pelo movimento lento da câmera e uma decupagem precisa que cria o suspense a partir do nada. A solução visual é mais eloquente do que toda a vontade poética do filme, e ali, no não-literal, encontra um momento de real força cinematográfica.

Além disso, há também planos iluminados por dois atores experientes e inteligentes o suficiente para quebrar essa monotonia de encenação com inflexões e sutilezas verbais e corporais: Márcio Vito e Maria Gladys. Sempre que vemos um dos dois atores em cena, o filme parece recuperar pulsação, talvez pela simples presença de espíritos inquietos em meio a tanta quietude. Não deixa de ser irônico que um filme sobre o poder juvenil e que deseja se filiar ao que de mais moderno é feito no cinema hoje só pareça sair do lugar quando dois atores mais experientes entram em cena, ou quando a flutuação no presente é potencializada por uma decupagem mais clássica. Irônico, mas não sem sentido: quando escrevi sobre A Fuga da Mulher-Gorila, o texto era encerrado dizendo que o filme encarava um vazio e tentava lhe preencher com o coração que lhe era original. Temos aí uma definição possível de arte clássica. A Alegria tem arroubos dessa força material em meio às afirmações pouco frutíferas dos encantos e dos limites de seu próprio quarto (e lembremos que a palavra mais importante no título do belo romance curto Viagem ao Redor do Meu Quarto, de Xavier de Maistre, não é "quarto", mas sim "viagem"). São momentos em que a citação é deixada de lado e a vontade de filiação é dispensada para que a relação com influências se dê na única esfera cabível: Shyamalan é retomado pela precisão dos tempos, dos cortes, da colocação da câmera - elementos que, conjugados, constroem uma experiência viva, tensa e confrontadora. Uma experiência, enfim, cinematográfica.

Novembro de 2010

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