ensaios - especial retrospectiva 2007
Entre imagens e números Caminhos
do cinema brasileiro ao longo de um ano por Cléber
Eduardo Teria sido 2007 o ano de Tropa
de Elite, de José Padilha, ou o de Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho?
Se pensarmos no primeiro caso, o do filme com maior resposta social/cultural e
com o maior número de ingressos entre títulos brasileiros, talvez tenhamos de
pensar também em duas operações de diferentes níveis de fracasso da Globo Filmes,
no caso Antonia, de Tata Amaral, e Cidade dos Homens, de Paulo Morelli,
que carregam em suas imagens não somente supostos atrativos para se vender muitos
ingressos, o que não ocorreu, mas também visões de seus idealizadores sobre a
vida em espaços marcados pela pobreza material, uma e outra marcadas também por
suas relações com um formato televisivo: a telesérie matriz ou filial da versão
em cinema. Teríamos ainda de levar em conta um filme bastante diferente desses
todos, Primo Basílio, de Daniel Filho, único dentre os lançamentos de público
de milhão(ões) dirigido por um veterano da imagem, mantendo a tradição brasileira
de adaptar clássicos da literatura, mas procurando contemporanizar o material
inspirador, sem transformá-lo em matéria prima de reconstituições de época. Nenhum
clássico da literatura, com mais de um século de vida, havia obtido tal êxito
pós-Embrafilme.
Se
o ano de 2007, por outro lado, for o de Jogo de Cena, então, em vez de
pensarmos em termos de projeção e retorno social/cultural, pensaremos em estética.
Se seguirmos esse caminho, o da expressão, não o da circulação, teríamos de levar
em conta, consequentemente, outros filmes poucos vistos, mas de força cinematográfica,
como Cão sem Dono, de Beto Brant, Santiago, de João Moreira Salles,
e Mutum, de Sandra Kogut – filmes lançados em circuito comercial ou exibidos
em mostras e festivais, que não tiveram o sucesso das produções mencionadas no
parágrafo anterior, mas somaram características marcantes para o momento. Levando-se
em conta 2007 como ano de estréia, comercial ou não, a lista teria de se expandir,
com a inclusão dos novos filmes de alguns de nossos diretores mais particulares,
seja entre os mais experientes, como Julio Bressane (Cleópatra) e Carlos
Reichenbach (Falsa Loura), seja entre os valores dos anos 90/2000, como
Joel Pizzini (Anabazys, em parceria com Paloma Rocha), José Eduardo Belmonte
(Meu Mundo em Perigo), Paulo Caldas (Deserto Feliz) e Petrus Cariry (O
Grão). No primeiro caso, o dos filmes de circulação,
o Rio retornou, após Cidade de Deus, com inegável força, menos pelos apelos
cenográficos de suas belezas naturais, mais por sua inserção no imaginário contemporâneo,
com a droga eleita como questão urgente, coração de uma metástase social em Tropa
de Elite, pulmão da ascensão e queda de um playboy em Meu Nome Não é Johnny
(lançado em 2008, mas que teve suas primeiras pré-estréias ainda no fim do ano
passado). No filme de José Padilha, a ótica é legalista, do certo e errado perante
a lei, sem nada além disso. No filme dirigido por Mauro Lima, o legalismo é substituído
menos por uma moral e mais por um chamado à saúde, embora a saúde, no caso, passe
longe dos limites orgânicos. Se o narrador de Tropa de Elite, o Capitão
Nascimento, é um doente esclarecido, em crise diante de seu mundo, o protagonista
de Meu Nome Não é Johnny, João Araújo, é um hedonista sem arrependimentos,
que, apesar dos letreiros sobre sua regeneração ao final, dá sinais de divertir-se
com seu percurso, em paz com seu mundo. A
droga também esteve presente em Cidade dos Homens, direção de Paulo Morelli,
paulista como Mauro Lima e Fernando Meirelles, o que é sinal, em algum nível,
de uma desmunicipalização de assuntos e espaços. Na vida de Acerola e Laranjinha,
a droga é uma ausência onipresente, a corroer relações e ambientes, vinculada
a um universo de carências sociais. As imagens dessas narrativas em torno das
drogas, levadas de maneira panorâmica ampla em Tropa de Elite, pela tangente
em Cidade dos Homens e por um recorte da elite financeira em Meu Nome
Não é Johnny, de alguma forma, tem mais a ver com o ambiente social desse
último, tendo em vista que, no contexto do cinema brasileiro de 2007, esses foram
filmes da elite de nossa produção. A droga, portanto, mesmo quando se refere a
pobreza, é coisa do cinema rico, ou ao menos da porção rica de nosso cinema, essa
vertente do espetáculo de denúncia social. Mas realmente há uma denúncia, um dedo
acusador, um alvo a ser atacado? Ou o que vemos, em cada um deles, é a constatação
do inevitável, que, mesmo quando parece diagnosticado, como em Tropa de Elite,
não chega exatamente a lugar algum? O compromisso com o espetáculo
certamente limita algumas rotas possíveis em cada um desses filmes, mas, se não
podemos ser ingênuos de esperar contundência crítica para além de sensacionalismos
e prazer na experiência da sessão, talvez possamos esperar os efeitos do espetáculo,
que, mesmo para quem chutou a canela de Cidade de Deus, era algo reconhecidamente
forte no filme de Meirelles. Pois tanto Cidade dos Homens como Tropa
de Elite como Meu Nome Não é Johnny parecem filmes nos quais a engenharia
de produção deixa pouco espaço para a direção, ao menos se entendermos direção
como resolução criativa das situações no espaço – não somente gerenciamento de
equipe e cumprimento de agenda de filmagem. Há uma perda considerável em matéria
de criatividade e habilidade se comparamos esses três filmes com o paradigma Cidade
de Deus, ao menos no que se refere à resolução técnica, a dinamismo narrativo
e a estrutura de acontecimentos. O cinema A do Brasil, esse de bons orçamentos
e atrás de milhões de ingressos, tem um tanto de B em sua resolução. Por
outro lado, o cinema B do Brasil, aquele de orçamento modesto e de público segmentado,
de milhares de espectadores, tem estofo de A. Lida com a própria linguagem na
afirmação de suas imagens. Cada um, claro, a seu modo. Seria um acinte procurar
traçar uma linha unificadora, de modo a englobar Jogo de Cena, Santiago,
Cão sem Dono e Mutum, entre os lançados em circuito, ou mesmo Cleópatra,
Falsa Loura, Anabasys, Deserto Feliz, O Grão e Meu Mundo em Perigo,
no caso dos exibidos somente em festivais, mas há na soma deles uma camada de
proteína estética, um DNA de autorias, um compromisso com uma maneira específica
de olhar as vidas em cena. Eduardo Coutinho e João Moreira Salles até se aproximam
um do outro por trabalharem a narrativa como um jogo de aparências e de revelações,
de pistas e despistes, de máscaras e desnudamentos, tão interessados nas regras
de cada um dos jogos quanto nas situações geradas por seus mecanismos, tanto por
seus personagens quanto por seus próprios filmes. Nos dois casos, os temas até
estão lá, na voz de entrevistados e de um narrador, mas é a operação, em última
instância, que está em questão, além de ser ela, a operação de construção do cinema,
que revela algo de alguém. Por
mais absurdo que possa parecer, ao menos à primeira vista, quebrar a distância
entre Brant e Belmonte, no geral de suas filmografias e no específico de seus
filmes de 2007, o absurdo logo se naturaliza, mas pela oposição entre os dois
novos filmes. Brant mantém a fidelidade à irregularidade com potência de seus
filmes anteriores em Cão sem Dono, repetindo com mais autenticidade e menos
armaduras o olhar mais observador de Crime Delicado, mas esvaziando-se
de conceito dramatúrgico para se centrar mais nas experiências diretas dos personagens,
menos em seus significados e mais na sensorialidade emanada delas. À frente da
narrativa, um jovem perdido, em estado de dúvida e confusão, tanto em relação
ao amor quanto em relação ao trabalho, com a família a apoiá-lo com afeto.
Em Meu Mundo em Perigo, em vez de experiências diretas, vemos situações
a serviço de uma dramaturgia quase conceitual (como em Crime Delicado)
e, em vez do apoio familiar diante das fragilidades dos personagens, temos fragilidades
geradas pelas relações de família, ou ao menos ligadas a ela. Todos os três personagens
centrais perdem algum laço e, por esse motivo, irão vagar sem rumo, eventualmente
se encontrando uns com os outros, eventualmente se trombando. Se
Beto Brant abre espaço para uma zona de escape ao final de Cão sem Dono,
José Eduardo Belmonte fecha todas as zonas de fuga, estabelecendo um determinismo
trágico sem opção para seus personagens. Nos dois casos, há um sentimento de deslocamento.
Os personagens não se sentem à vontade com suas vidas. Nesse sentido, pensemos
em Mutum, de Sandra Kogut, que, se em seu primeiro longa, Um Passaporte
Húngaro, tematizava a identidade múltipla, acima de vínculos nacionais e geográficos,
agora mostra um protagonista arraigado, mergulhado em sua vivência no campo, um
tanto deslocado dela, o que, no final, resultará em sua partida. Ou seja: sua
subjetividade terá de se afirmar em outro contexto, porque ela é maior que os
limites de sua vida. Não há grande diferença em relação ao sentimento de Hermila
em O Céu de Suely, de Karim Ainouz, filme certamente paradigmático da nova
demanda de exílio e deslocamento – que, lançado em 2006, manteve-se na linha de
frente da discussão sobre cinema entre os críticos, realizadores e estudiosos.
A zona de escape em Mutum, como em O Céu de Suely, está fora do
ambiente original. É preciso partir. Em
Falsa Loura, de Carlos Reichenbach, depois de ter seu corpo mercantilizado
e usufruído, depois de ver seu pai procurar refúgio em um idílio possível, em
um exílio viável, a jovem operária Silmara corre para algum lugar, em nossa direção,
para dentro de nosso e de seu próprio mundo, não em fuga dele, porque a fuga aqui
talvez tenha de se dar sem o deslocamento. O escape de Silmara, talvez, esteja
na imaginação, nas fantasias, na ilusão de um mundo inexistente, mas, conforme
se dará conta, esse escape é parcial, porque a experiência abre seus olhos para
a ausência do sonho também. Uma personagem dividida entre as possibilidades inventadas
e a realidade possível. E em Deserto Feliz? Não seria também a prostituta
adolescente uma personagem entre o desejo de outra vida e a inviabilidade dela?
Ou não haveria sequer tensão nesse lá e cá, como não há em Baixio das Bestas,
de Cláudio Assis, filme de 2006, mas lançado em 2007, no qual a prostituição de
uma menina, no fim das contas, era a melhor saída para ela? O sonho com o primeiro
mundo da garota de Deserto Feliz, o desejo de deslocar-se a partir de seu
deslocamento estático, parece ser um amortecimento para sua experiência. Como
se tem filmado essas situações e personagens? Eduardo Coutinho e João Moreira
Salles, embora sejam habilidosos condutores da relação câmera/personagens, colocam
em questão esse modelo interativo, empregando a montagem para levantar suspeitas,
para resignificar o plano e o encontro. Santiago primeiro embaralha as
cartas para depois baixar a canastra e bater. Chega a uma conclusão, a um sentido
organizador de tudo, mesmo sendo uma organização da dúvida, da desconfiança de
si e da vida, da falta de lógica das coisas e do sentimento de ausência e desaparecimento.
Uma montagem para construir um vazio preenchido de memórias. Jogo de Cena
finge organizar a aparência enganosa dos planos, uma subversão em se tratando
de Coutinho, para quem o plano é sempre atestado e revelação. Mas organiza para
desorganizar o pacto com a credibilidade, deixando uma zona nebulosa entre aparência
e efeito, certamente mais empenhado no efeito da aparência e não na aparência
do efeito. Um filme sem conclusões de primeira, semeador da dúvida, habitado por
vida, as vividas e as encenadas, vividas somente para a câmera, revividas de outra
forma para o cinema. Para João Moreira Salles, a dúvida
sobre o documentário é assumida, mas destrinchada. Para Coutinho, a dúvida é a
linguagem, o efeito, a estratégia e o objetivo. Toda imagem e toda palavra revelam
e escondem algo. Toda linguagem é uma mentira em busca de uma verdade. Em Santiago,
a verdade é trazida à tela, pela voz, e a linguagem se cumpre. Em Jogo de Cena,
a verdade se esconde, aparece pela metade, a linguagem se assume, não mais como
capacidade de evidenciar, mas como disposição de omitir. Entre
os diretores de ficção, podemos dividi-los, grosso modo, entre os do acúmulo e
os da contenção. De um lado, José Eduardo Belmonte e Carlos Reichenbach. De outro,
o atual Beto Brant e Sandra Kogut. No meio, Paulo Caldas. Belmonte acumula planos
e tons. Filma em plano-seqüência, mas corta bastante. Reichenbach acumula elementos
distintos com os quais compõe a atmosfera e o mundo de seu filme. Nos dá a impressão
de trabalhar com muitas informações visuais e sonoras com as quais temos de lidar.
A contenção de Beto Brant também não é a mesma de Sandra Kogut. Cão sem Dono
é seco, tem aparência de improviso, mas um improviso quase performático, que carrega
placas para atentarmos sua liberdade cênica, chamando atenção menos pelo efeito
de autenticidade e mais pela quase revelação de suas estratégias: uma contenção
quase construtivista. Já Mutum empenha-se para, sem perder de vista certo
rigor de enquadramento, anular sinais de construção, de modo a ter a impressão
de vida testemunhada. Em matéria de luz, a de Belmonte e
a de Reichenbach são mais evidentes, se evidenciam mais, enquanto a de Brant e
Sandra, de diferentes maneiras, procuram se naturalizar. Isso não significa que,
nessa busca de uma naturalização da presença do fotógrafo, Mutum esconda
a iluminação, já que, nesse empenho naturalista, a presença de Mauro Pinheiro
Jr, o fotógrafo, está lá com a mão erguida. Podemos pensar com as mesmas palavras
na fotografia de Ivo Lopes Araújo para O Grão. Parece haver uma contenção,
em sintonia com a seletividade dos enquadramentos, mas há um estudo de luz, uma
racionalização da imagem, também em sintonia com o formalismo dos planos. Formalismo
e realismo, quase antropológico. Antropoesia. O que seria natural, com efeito
de simplicidade, torna-se reconhecível. Chama atenção, em suma. Não
é diferente o efeito da luz fria de Deserto Feliz, de Caldas, esse cineasta
do acúmulo e da contenção, do enquadramento com aparência de pensado e outro com
aparência de inventado na hora. A luz fria pode soar natural e retirada, escondidinha,
mas, na verdade, destaca sua presença assim, com essa busca do desaparecimento.
Caldas seria dentro da vertente realista estilizada o que Bressane é no segmento
“arte afirmada com aparência de arte”, segmento esse do qual também faz parte
Luiz Fernando Carvalho, Guilherme de Almeida Prado, Marcelo Masagão e Joel Pizzini,
todos eles assumidos enquanto exibicionistas da estética, sem de forma alguma
atribuirmos sentido negativo ao exibicionismo estético. Cleópatra é acúmulo
e contenção, como tem sido, em vários momentos, o cinema de Bressane. Talvez o
acúmulo, agora, esbarre no excesso. Há lá uma luz, que, embora procure a expressão,
a expressividade, o efeito expressivo, às vezes soa chique, luxuosa, excessivamente
caprichada, asfixiando o que há para se iluminar. Pensando
em conjunto esses filmes mencionados no artigo, percebe-se uma soma de iniciativas
ambiciosas na linguagem, umas mais rompidas com códigos, outras menos distantes
deles, que resulta em uma média alta para nossos principais filmes do ano. Jovens
figuras femininas em crise ou em paz com a crise, um mito histórico e erótico
de poder e crise, um rapaz em crise consigo e com seu espaço, uma criança aprendendo
a lidar com crise a sua volta, dois documentários em crise consigo e com os documentários.
Um cinema de crise. Um cinema em crise? A afirmação parece óbvia em sua viabilidade.
A pergunta nos coloca a necessidade de uma crise em nossa perspectiva, de modo
a estar atento para onde anda nosso cinema, se está em sintonia com o que anda
a nos mostrar, ou se tem procurado inserir-se na contemporaneidade audiovisual
sem deixar de levar em conta certos paradigmas (de luz, de enquadramento, de dramaturgia).
Cada caso é um caso. Na soma deles, certamente, um ano forte
– se tomarmos os destaques estéticos. Um ano irregular se tomamos a totalidade
de primeiras exibições, mas com uma ampla camada de filmes interessantes, como
Andarilho, de Cao Guimarães; Não Por Acaso, de Philippe Barcinsky;
A Via Láctea, de Lina Chamie; Amigos de Risco, de Daniel Bandeira;
Meu Nome é Dindi; de Bruno Safadi; e Corpo, de Rubens Rewald e Rossana
Foglia, cada um deles únicos a sua maneira. Já se pensarmos nos filmes de bilheteria
gorda, um ano frágil de cinema, com a força das imagens inferior a dos números.
Fevereiro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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