in loco - cobertura dos festivais
Caixas (Boxes), de Jane Birkin (França,
2007) por Eduardo Valente Uterino
filme de autora
A primeira imagem de Caixas é
a de Jane Birkin abraçada ao que seria o cadáver de seu pai (Michel Piccoli),
praticamente pedindo àquele corpo que não apodreça porque ela não sabe o que vai
fazer na ausência dele: as saudades serão muitas e ele é insubstituível. Depois
de um corte, ela aparece beijando os pés dele, continuando o mesmo monólogo/cena.
O que esta introdução deixa bastante claro para nós é o nível de entrega de Birkin
a este filme, a este trabalho: há muito pouco medo do ridículo em Caixas,
e esta é certamente uma de suas grandes qualidades. O título
do filme se refere, num sentido mais direto, aos montes de caixas que ocupam a
casa, aparentemente em vias de ser abandonada (ou para a qual Birkin volta depois
de uma longa ausência – isso nunca fica claro no filme, assim como a maioria das
coisas realmente “práticas” quanto a um possível presente desta narrativa). No
entanto, é claro que há um sentido metafórico mais importante por trás disso,
a idéia mesmo de que os vários passados que vivemos, em especial as relações amorosas
distintas, são como caixas que guardamos e levamos conosco, mesmo que seja no
mais profundo subconsciente, e que eventualmente precisaremos reabrir e enfrentar
o conteúdo do que ali ficou guardado (às vezes por muito tempo). O
tempo em que acompanhamos a personagem de Birkin no filme é um tempo de reabrir
as caixas do passado, onde o grande barato da sua estrutura cinematográfica é
a liberdade com que a dimensão da memória se mistura com o espaço físico à sua
volta. Passam a dividir o espaço então personagens que sabemos estar mortos, com
outros que apenas podemos supor estarem bastante vivas (como as três filhas de
Birkin), mas que aparecem em cena como reflexos do subconsciente da personagem,
até o momento em que começam a surgir em cena algumas figuras cujo nível de realidade
nós questionamos o tempo todo. É neste interstício de lembrança, imaginário e
(pouquíssima) realidade que o filme joga o tempo todo, sem sentir a menor necessidade
de estabelecer separações ou explicações. Passeamos, isso sim, pela cabeça e pelo
coração desta personagem que faz uma reavaliação de sua vida – sem muito espaço
para culpas, mas principalmente para o afeto. Até pelas características
bastante idiossincráticas do projeto, é fato que uma vez que suas regras estejam
postas na mesa (após um começo de considerável efeito de maravilhamento, com a
primeira entrada em cena de Piccoli vivo, de Geraldine Chaplin como a mãe de Birkin,
e das filhas), o filme vive num certo looping mental da protagonista, onde
a noção bastante fluida de “desenvolvimento narrativo” aqui aplicada fará com
que alguns momentos sejam efetivamente fortes e pregnantes (a ida até a ilha sendo
o mais forte), enquanto alguns outros resultam um tanto repetitivos e eventualmente
tediosos. No entanto, de alguma maneira, o filme retém no
nosso olhar um frescor bastante inesperado, a partir de uma opção clara de Birkin
de não se ater tanto às características formais (a fotografia e o jogo de câmera
soam muitas vezes francamente desleixados), e sim apostar principalmente no jogo
de seus atores. Atores que parecem divertir-se enormemente em cena, e que alcançam
alguns momentos realmente iluminados – em especial, Piccoli, Chaplin e a menina
que interpreta a filha mais nova de Birkin. Se é deles que emana a maior força
de Caixas, é preciso se dizer que é uma força bastante grande, muitas vezes. Outubro
de 2007editoria@revistacinetica.com.br
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