eletrônica - especial retrospectiva
2006 O semblante de William Bonner e
a concorrente-clone por Lila Foster
A Rede Globo exerce há tantos anos uma hegemonia tão
impressionante nos meios de comunicação brasileiros, mantendo uma grande de programação
cujo esqueleto permanece o mesmo e que faz qualquer emissora ter que se adaptar
ou fugir dos horários já conquistados pelo canal, que não é difícil imaginar os
nossos bisnetos assistindo Jornal Nacional e depois novela das oito/nove. No entanto,
este foi o desafio lançado pela Rede Record em 2006: se não puder vencer a concorrente,
pelo menos tentaria se aproximar o máximo possível. A estratégia escolhida não
deixa de ser curiosa: para concorrer com a Globo e conquistar o olhar do espectador
ela deveria se tornar igual à ela, implementando uma programação de “qualidade”
em oposição a uma programação notadamente popular (os Note e Anote, Cidade Alerta,
Ratinho).
Com o lema "A caminho da liderança",
a Record já vinha investindo em telenovelas e na contratação de vários jornalistas,
profissionais e artistas com carreira consolidada na Rede Globo como Márcio Garcia,
Britto Júnior, Paulo Henrique Amorim, Celso Freitas, Tom Cavalcante e vários outros
artistas e produtores globais. Essas contratações só deixam claro que a hegemonia
Globo também se aplica aos seus profissionais, que adquirem estatuto de qualidade
e credibilidade – mesmo que esta migração também fosse comum na via oposta, vide
Ratinho e Ana Maria Braga. A ida para Globo consiste sempre numa ascensão – mesmo
que a volta nem sempre seja uma queda. A contratação desses
quadros caminhou junto de investimento maciço em infra-estrutura como equipamentos
e estúdios. Além da qualidade técnica, a programação esteve repleta de títulos
e cenários inspirados na irmã mais rica: Domingo Espetacular imitava o
Fantástico no cenário, temas e formato; Tela Máxima parecia com
Tela Quente; a Escrava Isaura conquistou sucesso internacional a
reboque na primeira versão interpretada por Lucélia Santos; Bicho do Mato
fora produzida pela Globo em 1972; o logo do Jornal da Record tentava imitar
o Jornal Nacional. Esses produtos davam sempre uma sensação de reboque,
de produção precária. A Record tem apostado ainda no combate
direto à sua concorrente: seja na vertente humorística, onde o programa no Tom
dedica alguns de seus blocos à caricatura de programas globais; seja nos telejornais,
onde Paulo Henrique Amorim, ex-Globo e agora âncora do Domingo Espetacular,
tem feito questão de expor as podridões globais em livro como Plim-plim, a
peleja de Brizola contra a fraude eleitoral, entrevistas (Carta Capital, dezembro
2006) e
numa matéria especial que foi ao ar num dos últimos domingos do ano de 2006, dedicada
a Globo, citando o famoso documentário Muito além de Cidadão Kane, a edição
do debate Lula-Collor em 1989 e o recente caso do jornalista Rodrigo Vianna denunciando
a manipulação das notícias durante a campanha eleitoral de 2006. É a pecha de
crítico combativo que Paulo Henrique Amorim carrega, recheando de acidez as suas
palavras e denunciando das entranhas da grande empresa de comunicação. Enquanto
isso, William Bonner, editor-chefe do Jornal Nacional continua demonstrando toda
fé nas suas pautas sobre os dilemas brasileiros, na missão social da sua empresa
e, mais do que tudo, no seu papel como porta-voz da democracia interessado em
acompanhar os dramas do povo brasileiro de perto, sofrendo junto no calor da hora.
Basta lembrarmos do seu semblante como mediador dos debates entre candidatos e
sua rápida ida a São Paulo para cobrir de perto os ataques do PCC: um leve sorriso
de prazer no rosto, a fala deixando clara uma missão: dar o melhor da informação
de forma mais rápida e consistente – “a” versão. Triste semblante este, de um
sujeito que, se não esbarra no cinismo, ao menos surge como sujeito a-histórico:
um olhar com um misto de ingenuidade e ignorância. Esse
sujeito não faz presente a história de uma emissora que, como sabemos, construiu
o seu patrimônio e oligopólio durante a ditadura militar, atravancou todo o processo
de redemocratização do país e continua se valendo da manipulação para se manter
no poder: é capaz de fazer cair por terra qualquer movimento de regulação das
telecomunicações – mundo no qual não existe qualquer lei cumprida, vide as concessões
sendo renovadas pelos seus próprios beneficiários e rádios comunitárias sendo
perseguidas. Que dirá mudar o horário do jogo de futebol ou arrastar o público
para os cinemas ver os filmes de seu braço cinematográfico. Claro
que a Record não é lá muito diferente, se centra no combate e conquistou o segundo
lugar na audiência do horário nobre ganhando no SBT. O grupo por trás disso é
nada mais nada menos do que a Igreja Universal do Reino de Deus, em franca ascensão,
conquistando cada vez mais cadeiras no Legislativo e agora cada vez mais espectadores.
Apesar das diferenças, pensar no potencial de competitividade é manter a questão
restrita à concorrência entre empresas e não uma aposta em outro tipo de produção
cultural. Se não deixa de ser interessante que certas questões possam ser tratadas
de forma menos pasteurizada e que a Globo possa ter uma possível concorrente/ameaça
ao seu poderio, trocar a responsabilidade social da Rede Globo pelo espírito combativo
da Rede Record é a mesma coisa que trocar gato por lebre. Vidas
Opostas? O empreendimento mais bem sucedido desta nova
fase foi da Record foi, sem dúvida, a novela Vidas Opostas, uma grande
produção com direito a imagens aéreas do Rio de Janeiro, trilha sonora inspirada
em Chico Buarque, uma novela que não apresentava nada daquela precariedade que
espantava o espectador à primeira vista na maioria das novelas das concorrentes.
Seu lançamento, inclusive, foi antecipado por campanha publicitária de responsabilidade
da DPZ, utilizando outdoors e revistas de grande circulação. Um
certo ar de ousadia se fez sentir, já que lançar novelas em mídia impressa não
é muito comum: a Globo mesmo só faz isso mini-séries especiais e esse tipo de
divulgação parece até mesmo desnecessária, pois a rede garante a repercussão das
novas novelas por meio da audiência fiel, propagandas na própria grade e uma programação
que se autoreferencia a todo o momento – afinal, o tema mais freqüente na Rede
Globo não é o Brasil, a cultura ou o mundo: é ela mesma. O resultado obtido pela
campanha, que tornou visível uma novela de outro canal, foi o recorde de audiência
da Record no horário, batendo 16 pontos no Ibope em seu capítulo de estréia. Além
da produção, o tema se mostrou em voga: imagens da periferia e violência urbana,
uma história de amor entre dois personagens de classes sociais distintas. E
é no reflexo deste universo que a novela se mostra, em sua dramaturgia e direção,
um pouco diferente daquela mais praticada pela Globo. Sem perder de vista o fato
de que não se pretende mesmo ali realizar algo muito diferente (muito pelo contrário,
a novela da Globo continua um ideal), alguns fatores fazem diferença na fruição
dos capítulos e das tramas. O primeiro deles é que os diálogos e os conflitos
ali não parecem estar em função de nada além da própria história: existe uma consistência
não refém da reação do público, dos índices do Ibope. O motivo talvez seja o fato
da Record ter um espaço a conquistar e a Globo um espaço a perder – não pela concorrência,
mas pela queda dos seus índices de audiência. Uma variação de um ou dois pontos
faz um autor de novela global rever os rumos dos seus personagens em questão de
dias. A trama segue esta gangorra, tornando certos núcleos dramáticos bem inconsistentes.
Outra questão global é o merchandising, cuja inserção provoca forte influência
na direção, construção de cena e enquadramentos. Às vezes o lançamento de um carro
da Volks “inspira” cenas um tanto inusitadas (agora recentemente, a cena da fuga
das freiras em Páginas da Vida, de longa duração e com um carro estacionado
do lado de fora), um lançamento de um filme da Globo Filmes gera bate-papos longos,
com frases enunciadas de forma endurecida pelos atores que não podem disfarçar
a forçação de barra. Por último, e não menos importante,
a Rede Globo tem investido cada vez mais, e de forma cada vez mais sufocante,
no marketing social da própria empresa. O lema da responsabilidade social é agora
a bola da vez – e a Globo, com toda a sua esperteza e sentindo uma modificação
no cenário político, teve que mudar para permanecer a mesma. O fato é que este
lema atingiu a programação como um todo, das cestas básicas distribuídas por artistas
no Vídeo Show, passando pela produção de vários programas vinculados à periferia,
até as milhares de questões politicamente corretas levantadas a cada capítulo
de Páginas da Vida – e isso tem gerado uma construção dramatúrgica sempre
em função de uma mensagem a ser passada. Verdade
que Glória Perez, autora de sucessos globais, sempre explorou temas sociais de
forma direta, repleta de sentimentalismo e trilha sonora intensa (lembram da abertura
de Barriga de Aluguel?). Pois a novela de Manoel Carlos (foto) também tem
preocupação semelhante, porém de forma over, extremamente ostensiva. Os
temas são: síndrome de Down, preconceito racial, adoção, violência doméstica,
bulimia, violência urbana, seqüestro da classe média... tantos, que parecem estar
ali para cumprir de forma exagerada o protocolo principal da empresa: construir
sua imagem como porta-voz das questões “sociais”, contribuindo para sua “missão”
(e responsabilidade) de construção da democracia. Dentro
de limites claros, Vidas Opostas tem demonstrado um interesse de tratar
suas histórias com um olhar mais questionador, ou pelo menos mais interessado.
O “nacional” ali está muito mais em função de uma indignação – mais potente do
que bela, correta, justa e moralizante. Um exemplo claro é uma cena já no primeiro
capítulo: durante a invasão da favela por policiais (cenas de grande impacto,
filmadas em locação), um morador é morto à queima roupa por um policial. Em câmera
lenta, ele cai no chão que está pintado com a bandeira do Brasil, como nas decorações
típicas em época de Copa do Mundo. Uma moradora vê o crime pela janela. Daí se
seguiram uma série de questões como a impunidade policial, os meandros corruptos
da polícia e seu vinculo com a elite empresarial. É uma situação brasileira que
está em jogo: a corrupção, o crime organizado na favela e no alto escalão, o preconceito
de classe. Um dos seus núcleos dramáticos é formado por uma delegada que investiga
o caso, e tenta incriminar o policial corrupto autor do crime. Existe em Vidas
Opostas um desejo de tratar de questões como violência nas favelas, o universo
viciado da polícia e sua relação com os grandes detentores do poder de forma menos
comprometida e mais questionadora. Mais do que responsabilidade
social, um ideal de justiça permeia os personagens e a trama, fazendo da novela
um pouco mais do que um sensor de picos de audiência ou espaço-sede de merchandising.
Especialista na construção do ambiente high-society da zona sul carioca,
não existe na novela de Manoel Carlos um interesse pelos conflitos e questões
como em Vidas Opostas: o fundamental é veicular uma imagem de consciência
e sensibilidade social. Incrível é a capacidade que a Globo tem de formar esta
imagem e de acreditar que ela: empresa de concessão pública, cumpre a sua parcela
no contrato através de uma ideologia vinculada a responsabilidade social, idoneidade,
transparência e competência. Trocando em miúdos, a democratização
da mídia ainda tem longo percurso pela frente a começar pela simples implementação
de uma legislação que, mesmo deficiente, proíba o oligopólio e deixe claro o caráter
público que essas emissoras deveriam assumir, transmitindo produções independentes,
e principalmente, respeitando o princípio de que os maiores interessados não poderiam
legislar sobre as suas próprias concessões. Por enquanto, o embate entre uma empresa
em projeto de conquista de poder e outra lutando pela manutenção do mesmo poder
desejado efetivamente não promete muitas mudanças. editoria@revistacinetica.com.br
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