Boca, de Flavio
Frederico (Brasil,
2010)
por Eduardo Valente
Verdade
só na mentira
Nas suas primeiras imagens, Boca do Lixo
promete um filme bastante raro no cinema brasileiro: da maneira
como as cenas são iluminadas a como a câmera se move por dentro
dos ambientes, no apuro da direção de arte e figurinos ao uso
da narração em off, o filme parece disposto a abraçar um
maneirismo acentuado, propondo o que a princípio parece que vai
ser um mergulho no passado de São Paulo que preza mais pelo olhar
que o cinema joga sobre ele do que uma reconstituição de fato.
É promissor, porque o maneirismo sempre foi a característica mais
marcante nos curtas de Flavio Frederico, e portanto um ambiente
onde ele se sente bastante em casa – e não por acaso essa primeira
sequência faz pensar com algum interesse numa reapropriação de
um Wong Kar-wai para paisagens nacionais.
Infelizmente,
ao longo da sua duração, Boca vai se afastando mais e mais
desse sentimento de mundo que aposta na verdade do falso, e por
mais que continue extremamente elaborado em sua relação com suas
categorias técnicas, ele mais e mais se aproxima de um filme de
tintas realistas – principalmente na maneira como entremeia sua
narrativa. O grande problema desta opção feita pelo filme é que
o realismo, seja em sua vertente mais naturalista ou numa encarnação
um tanto mais artificial, pede que sejam construídos personagens
de fato, e que estes possam ressoar no espectador e fazer com
que ele não apenas aprecie esteticamente aquilo que passa pela
tela, mas que também consiga ser comovido de alguma maneira –
e é justamente isso que não acontece com Boca.
Por um lado, isso parece acontecer porque o filme está mais preocupado
com a noção de cena do que com o entrelaçamento entre elas – algo
que pode ser exemplificado pela presença de Paulo Cesar Peréio,
por exemplo, que sempre parece muito mais pronto ao seu dó de
peito habitual do que a construir de fato o seu Delegado Honório,
que resta para nós uma figura bidimensional. O mesmo acontecerá
com todos os outros (vários) personagens, que entram e saem de
cena com freqüência, sem que nunca nos interessemos de fato por
quem eles são: a amante/prostituta Rosana, o motorista Robertinho,
o menino Vicente, mas principalmente a esposa do protagonista,
Alaíde. Hermila Guedes é sempre será uma presença poderosa na
tela, mas quando sua personagem sai de cena abruptamente, ou quando
volta, nunca nos emocionamos de fato – ela é apenas mais um corpo
em cena.
Tudo
isso, claro, poderia ser devido à maneira de estar no mundo do
protagonista, o marginal Hiroito, um homem eminentemente egoísta
e preocupado apenas com o lugar que ele mesmo ocupa. No entanto,
essa seria saída conceitual fácil, porque embora ele seja sem
dúvida um personagem egocêntrico, o filme nos indica várias vezes
que ele é sim movido pelas coisas, que os atos alheios o afetam
– e isso nós nunca chegamos a sentir. Parece ser mais o caso de
um roteiro que segue à risca um manual já mais do que codificado
de “filmes de marginal”, com todas as inúmeras cenas e alterações
de caminho com as quais estamos totalmente familiarizados, da
ascensão à inevitável queda. E tome explosões de fúria, traições
de amigos e à mulheres, perda de controle do vício nas drogas,
corrupção de policiais, briga por território. Se não há nada de
mal em explorar alguns dos clichês da história do cinema a seu
favor, o que não parece funcionar de fato em Boca é que
Hiroito nunca consegue nos dizer o que ele tem de único, de diferente,
de só dele em meio aos clichês. E aí é pena que o filme não consiga
fazer ressoar de fato o seu espaço, a tal Boca do Lixo - que até
por dar nome ao filme, poderia e deveria ser o seu diferencial.
Mas quanto mais a história avança, mais nos fechamos sobre Hiroito
e deixamos de lado o espaço externo (não só o bairro, mas o país,
a História, etc), e assim nos fechamos mais e mais num personagem
que, no final das contas, soa apenas como “mais um”. E cujo final
“aberto” nos faz apenas pensar que, morto, preso ou delirante,
no fundo isso não nos faz sentir muito diferente – porque pouco
sentimos de qualquer jeito.
Outubro de 2010
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