in loco - cobertura do 45o festival de brasília
Boa Sorte, Meu Amor, de Daniel Aragão
por Fábio Andrade

Miragem

Logo nos primeiros movimentos de Boa Sorte, Meu Amor, longa de estréia de Daniel Aragão, temos um plano digno de antologia: Maria (Christiana Ubach) nos é apresentada como um raio luminoso em slow motion, preto e branco e cinemascope, ao som de “I Don’t Need You Around”, de Jackie Wilson. O fundo do quadro explode na violência estroboscópica de luzes desfocadas, enquanto Maria, com sorriso das mais capazes recepcionistas, flutua de maneira tão cotidiana quanto o olhar de Jean Seberg foge da dança em Bonjour Tristesse, de Otto Preminger. No meio daquela observação, os olhos de Maria se fundem com as profundezas da objetiva. Neste breve instante, somos irremediavelmente fisgados.

Há poucas ferramentas tão potentes no cinema quanto o corte seco, mas nem ele é capaz de quebrar tão facilmente os verdadeiros feitiços. A cena idealizada logo se revelará o ponto-de-vista de Dirceu (Vinicius Zinn), um playboy bon vivant com raízes nas profundezas mais incestuosas da vida brasileira – algo estabelecido desde o plano de abertura do filme –, tirando o espectador daquele lugar idealizado, jogando-o violentamente em uma rave do mundo real, onde Maria trabalha entregando panfletos. Ao contrário daquele plano flutuante, o mundo de Boa Sorte, Meu Amor é duro, seco e violento, e esse corte, que derruba o filme das nuvens e começa uma história entre dois personagens, já anuncia que nada a partir dali terá a força desse momento. O filme passará todo o resto de sua duração buscando novas fagulhas desse primeiro encontro, do magnetismo incontornável das paixões à primeira vista. E, como toda tragédia, fracassará na empreitada, com os devidos louros pela dedicada tentativa.

Daniel Aragão faz um filme petulante, ambicioso, desgovernado. Seus maiores trunfos e defeitos surgirão dessa condição. Foi-se a dedicação narrativa que impressionava em Não me Deixe em Casa, seu curta anterior; sobraram apenas as elipses, os cortes que saltam de um momento a outro, de um lugar a outro, de uma estrada a outra, de um cinema a outro. Enquanto Não me Deixe em Casa era marcado pelo interesse em dar conta de um determinado universo habitado pelos personagens, o universo de Boa Sorte, Meu Amor é tão somente o próprio cinema. Parte do desafio é justamente conciliar um desejo de cinema que beira a dislexia, de fazer ao mesmo tempo uma história de amor inacabada com o gosto pela composição geométrica de um Kim-Ki young e o sonho de fazer um western com Carlo Mossi. Daniel Aragão amarra tudo com um tênue barbante que conecta o primeiro plano ao final – igualmente vítima e algoz de um mesmo aborto – o que não impede o que está entre as duas pontas de se despedaçar sistematicamente, tentando se arranjar de outras formas a cada nova queda.

Por mais que seja perceptível a intenção de fundar o filme no excesso, no histrionismo e na exuberância inconstante das imagens – e que essa potência seja admirável como gesto – Boa Sorte, Meu Amor acaba sofrendo de um certo “efeitismo”, de uma necessidade de saturar cada imagem ou sequência com um alto grau de choques sonoros cujo objetivo se sobrepõe à forma e tenta resolver construções climáticas que, na verdade, só são possíveis se calcadas em sutileza. Mesmo uma cena pensada claramente como contraponto revela o mesmo tipo de estratégia: Maria chora as mágoas tocando um piano mudo, e a ausência de som é grifada justamente para criar o efeito.

Embora o uso da música renda os melhores momentos do filme, diversas vezes ele estampa o esforço por inflar o vazio, servindo como partitura rítmica que amarra imagens em sequências de montage que tentam extrair sentido da própria presença do efeito, e não de o que está na tela, necessariamente. Não estamos, portanto, tão distantes assim da lógica do espetáculo que marca os tempos fortes de Kátia, ou da beleza esvaziada de Otto. Embora o filme de Daniel Aragão seja mais competente quando alcança seus objetivos, essa retrofagia pós-moderna não parece extrema o suficiente para se tornar una (como nos filmes de Johnnie To, Wong Kar-wai ou Tarantino), e a extrema dissonância entre as partes naturalmente sabota qualquer possibilidade de harmonia. Entre a anulação de o que está diante da câmera e os efeitos que nem sempre se completam, Boa Sorte, Meu Amor rende pequenas pontas de de um engajamento que, não importa o quão profundo, no momento seguinte se desfaz como miragem.

Setembro de 2012

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