ensaios
A longa viagem de volta
Boa Sorte, Meu Amor de Daniel Aragão
por Luiz Soares Júnior

Boa Sorte, Meu Amor, longa de estréia de Daniel Aragão, é um filme que, à imagem e semelhança da trajetória de seus dois personagens, se “põe em marcha” e se “destina a”. Filme trôpego e disperso, gregário e contemplativo, road movie e home bitter home. Para o bem e para o mal - mas deixemos o mal para a segunda parte deste texto.

Dirceu, um abastado bon vivant cujas origens remontam à aristocracia canavieira da Zona da Mata pernambucana, vive em Recife, uma cidade cuja paisagem vem sofrendo um considerável processo de transformação, em parte graças ao trabalho de sua família, proprietária de uma empresa de demolição. À amnésia subjetiva – existencial e geográfica – do passado de sua família, Diego imprime um status objetivo, concreto: ele está a serviço de uma máquina que vive do apagamento de rastros, da dissipação visível de toda origem, da liquidação do passado. Os vários Recifes possíveis de que Recife é feita são arrasados com um “golpe” de botão, e, no lugar da potência fervilhante de trajetórias que uma cidade (mal) contém, descortina-se agora o raso horizonte de um way of life conformista de pequena burguesia: Recife aqui se torna uma vitrine – frontal e plana, como a luz assepticamente zumbi das novelas de televisão –, cuja espectral luminosidade tem por função sepultar o contracampo que todo campo segrega – os pobres, a origem sertaneja, os Outros – e, sobretudo, elidir o passado e seu sopro messiânico, fixar-se no presente fetichista dos bens de consumo. 

É aqui que o filme começa, deste lado do espelho; é aqui que Diego “começa”, do fundo deste espelho de anomia e déficit existencial. Os travellings inquisitórios e tateantes do filme estão em busca de uma Cidade soterrada sob a cidade, uma experiência minha expropriada (desapropriada) pelo monstro espectral de concreto e aço, construído pela Moura Dubeux, sob a cúpula do qual somos obrigados a habitar. Mas há no cinema a possibilidade de inscrições e transcrições de possíveis, de horizontes – na figura do contracampo ou na mobilização do fora de campo (sons off, faux-raccord), que submetem o presente (o campo, a ação, a diegese) ao diapasão de outros tempos ou experiências, virtuais, fantasmagóricas ou taumatúrgicas; oxigenação da vida presente pela contemplação intensiva ou viração do desejo.

Aqui, esta “diferença” se encarna numa personagem, Maria, que obriga o rapaz a revisitar (voltar?) ao convexo de toda experiência côncava. Maria é despojada, lúdica e toca piano. Todo um programa de renovação numinosa se inscreve na precisão com que Maria, martelando os ditongos, enfatiza para Dirceu que deseja fugir de Recife e seu conformismo, que a vida não é feita para o “à mão” e o agora (especialidade de Dirceu); que a vida deve votar-se (voltar-se) à distância e ao Eterno. Maria tem dez anos a menos do que Dirceu, e o seu credo existencial parece se contrapor frontalmente ao dele – ao que faz, ao que nega: se Dirceu aspira a um mundo estável e presente, o mundo dos “filhinhos de papai e de vovô” recifenses, o mundo dos empreendedores e dos credores, Maria vive em litígio com o presente. Para ela, nada é como deveria ser. Em Maria, Dirceu parece entrever, com um mal disfarçado fascínio, um pouco daquela infância sertaneja – livre, selvagem, outra – que ele, como homem de negócios e de decisões, precisou enterrar. Neste espaço urbano violentado pelo way of life de uma classe cujo ideal do ego é uma abjeta, crônica e niilista abjuração do Outro, configuram-se os sintomas de uma doença, e em Maria se vislumbra, senão a cura, a conjuração. Em seu rastro, o personagem segue; e por ele (nele) somos conduzidos por outra paisagem e modus vivendi: à horizontalidade animosa do apartamento (e do scope) substitui-se verticalidade “ascensional” da estrada; ao Cronos gregário e seqüencial do cotidiano, o Kairos da Revelação erótica e existencial.

... Mas como disse no início do texto, há um problema a se assinalar aqui. Boa sorte, Meu Amor padece em sua primeira parte – a Cidade, a alienação, a expropriação de ser e de habitar que  a caracteriza – de uma ausência de unidade flagrante. É mais uma colcha de retalhos ou de impressões que nunca chegam a constituir um “panorama” ou deflagrar uma síntese experiencial. Esta síntese nós só vamos encontrar perto do final, na jornada epifânica pelo sertão, que arremata o filme. Até lá, restam-nos momentos mais ou menos fulgurantes, mais ou menos coesos, encontros ou impressões de, mas sem a liga necessária a uma Bildung (Imagem, Figura de conjunto de) narrativa e existencial: os planos gerais e cacofônicos (Ligetti?) de uma Recife bigger than life, onde em sua vastidão horizontal “não encontro lugar para mim”; o coup de foudre expressionista da primeira “aparição” de Maria na boate – expressionista porque através de um contracampo abrupto nos é dado a ver que aquela visão encantada era apenas uma impressão subjetiva do personagem sobre a moça; as narrativas do pai (no começo do filme) e de Ana ao jantar, em busca de uma experiência que se deixe acolher e recontar no leito de Procrusto da palavra, que se deixe presentificar; os travellings dianteiros, disléxicos e desnorteados, à la Antonioni, que nos mostram Diego tentando se orientar pela cidade; a onipresença da música não-diegética, encarregando-se de designar este ser duplo do personagem, sempre no campo e no extra-campo, aqui e lá, incapaz de coincidir consigo mesmo, de fazer coabitar no espaço presente do campo os estados intermediários (utópicos, lisérgicos) que a música sugere: o onirismo, o sonambulismo, o stimmung e a fascinação; o uso do scope como um meio de amplificar até os limites da agorafobia a reificação de um espaço “que não foi feito à minha justa medida”: personagens ocupando os limites extremos e contrários do quadro, ou ainda este zoom sobre os rostos (o pai, Maria) que tenta designar uma essencial “separação” do corpo e do espaço circundante, indicando-o expressamente como Outro, como aquilo que me defronta e “me vira as costas”.

Enfim, está tudo ali – a alienação, a apatia, a entropia existencial, a impossibilidade de ser-com e ser-em –, mas não se ajusta ou coordena com a justa medida de um bloco unitário, de uma “perspectiva de”. Grande parte de Boa sorte, Meu Amor se encaixaria naquela intuição percuciente de Truffaut sobre os “filmes doentes”, obras-primas que “poderiam ter sido”, que por efeito de problemas de produção, descuido formal ou falta de maturação temporal da montagem (como parece ser o caso) acabaram por “não dar certo”, filmes em que o “filme potencial” ali preservado nos parece muito mais instigante que o filme propriamente dito: Marnie de Hitchcock é o caso clássico.

Há também um certo deságio de tom no filme que nos passa esta sensação de uma “impossível unidade”: é a busca de um diálogo entre o vulgar e o epifânico, o corriqueiro e o sublime, o clichê desabrido e o sempiterno da música e das “vistas elevadas e gerais”. Na primeira noite entre Maria e Diego, um obsedante e rasteiro “Bota a camisinha!” acaba por desaguar numa visão sub specie aeternitates do mar imemorial. Contra a vulgaridade “suburbana hype” do amigo de Ana na cena da piscina, ou o desbunde anal-estereofônico na primeira noite da boate, temos a ênfase no rosto renascentista da garota, ou nas “cartas de nobreza” de um minimalismo espectral (devedor de Antonioni, Duras e Resnais) nas cenas de interiores. Ou o beijo atabalhoado e babado da mulher no automóvel versus o encontro com o Totalmente Outro do sertão, ao final do filme.

O que se descreve aqui não é um panorama entre dois opostos modos de vida – sociais, existenciais e simbólicos –, a necessidade de “informação narrativo-diegética” de como chegam a se relacionar um funcionário da Moura Dubeux e uma kamikase da noite; o que Aragão tenta é manifestar uma contraposição metafísica entre dois “modos de ser”, dois tipos de errâncias, duas modalidades de desterritorialização. Só que o filme não se dá a maturação temporal necessária na montagem para tamisar e nuançar estas transições, estas “passagens”. Tudo ou é muito abrupto ou pouco desenvolvido. Godard tentou operação semelhante em Prénom Carmem: a imanência (o cuspe, a foda, o cotidiano) como instância crítica que vai desmistificar e desmitificar a transcendência “clássica”. A xoxota de Carmen e a masturbação de Don José, o ataque terrorista ao banco contrapostos aos últimos quartetos de Beethoven. Mas no filme de Godard temos a mediação fundamental que possibilita estas trocas sem que elas pareçam arbitrárias ou precipitadas: o próprio Godard faz o personagem do tio louco de Carmen, internado numa clínica. O demiurgo-Rei do cinema moderno “se suja” diegeticamente de esquizofrênico, expõe a cara à tapa. É Godard cineasta-Lear destronado quem genialmente permite a coabitação das baixezas e das grandezas, dos cimos e dos abismos que toda vida (e toda cultura) comportam. É ele o mediador infame e difamante de si mesmo e de todos os nobres valores consagrados à sua pessoa ao longo de 40 anos de genialidade.

... até que chega o sertão... O Deserto é cenário indispensável na consecução de qualquer experiência de Absoluto; no caso do filme, a Consagração de uma Origem e da possibilidade de Recomeço que este face a face permite. O deserto do Sinai e Moisés, Saulo em Damasco, Édipo e a Esfinge. O deserto é o lugar da revelação, porque é o lugar do Nada. Na palavra numinosa de San Juan de la Cruz, a experiência de comunhão com o Divino só se dá na “noche oscura del alma”. Entenda-se isto como a dessubjetivação – o barato, a expiação, o êxtase – absolutamente necessária à penetração de Deus em nosso recinto. Se o sujeito ali permanecer, Deus não entra. O sertão é o décor necessário à configuração de uma unidade de tom e de estilo procurados (sem se achar) pelo filme até então. Temos aqui até uma Tirésias como guru iniciática (a avó cega de Maria)...

Eu poderia sugerir que o “estilhaçamento” da forma da primeira parte seria uma projeção mimético-expressionista (na forma, na carne do filme) da piração existencial dos próprios personagens, mas seria forçar demais a letra. Na caminhada taumatúrgica que encerra Boa sorte, Meu Amor, encontramos uma tensão e uma amplidão – de ritmo, de foco, de escalas – onde se reconciliam, como em uma urna funerária antiga, todos os esparsos, fragmentários, precipitados momentos de que o filme, ao longo de sua trajetória, não conseguira achar o núcleo de contato ou o ponto de intersecção. Neste espaço e neste tempo resguardados pela Memória (da infância, da mulher desaparecida), o filme parece enfim se encontrar, e um homem ser reconduzido ao Ser: o batismo na água, a repetição dos planos da fazenda que inauguram o filme – o “muito tarde” e o “cedo demais” dos raccords desalinhados ajustados a uma medida de presente comum: “Eu nasci aqui”. Como no modelo da experiência delineado na Fenomenologia do espírito hegeliana, sempre chegamos tarde ou cedo demais – tarde porque, ao entendermos o que somos, já não estamos mais ali; e cedo porque, quando somos plenamente (infância, arte, droga), não sabemos que somos. Filme acidentado, irregular, mas cheio de crença no que narra e no que o desgarra, virtude necessária em tempos cínicos como os nossos.

Dezembro de 2012

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