história(s) do cinema brasileiro
O edital do BNDES e o choque de capitalismo à brasileira
por Leonardo Mecchi

A política pública para o cinema brasileiro tem muitas vezes cenas que deixariam as mais escrachadas chanchadas da Altântida no chinelo. Tomemos como exemplo a seqüência de fatos abaixo:

Maio de 2005 – Sérgio Sá Leitão (então assessor do Ministro da Cultura, hoje assessor da Presidência do BNDES) e Manoel Rangel (diretor da Ancine) ecoam o clamor do ministro Gilberto Gil por um “choque de capitalismo” no cinema brasileiro.

Final de 2006 – O BNDES lança o PROCULT – Programa de Apoio à Cadeia Produtiva do Audiovisual. Por trás da vistosa alcunha está a primeira tentativa do tal “choque de capitalismo”. Nas palavras do próprio programa, o objetivo é “viabilizar o apoio ao desenvolvimento da indústria audiovisual brasileira, considerando as especificidades do setor e seus problemas e limitações”. Através do programa, as produtoras brasileiras passavam a contar com empréstimos a juros baixíssimos (entre 1 e 2% ao ano) e prazos extensos (de até 8 anos) para viabilizar seus filmes.

Novembro de 2007 – O BNDES anuncia a lista dos projetos pré-selecionados pelo seu edital para receber recursos da ordem de R$ 12 milhões a fundo perdido. Entre os selecionados, os novos projetos dos diretores de 4 das 5 maiores bilheterias do cinema brasileiro dos últimos 15 anos (o único ausente é Hector Babenco, que não chegou a submeter um projeto ao edital).

Ora, se questionará o leitor mais atento, se o BNDES lança um programa especial para financiar justamente a parcela mais comercial da produção cinematográfica brasileira – e não poderia ser outro o alvo do PROCULT, tendo em vista sua formatação (empréstimo reembolsável, valor mínimo de R$ 1 milhão, necessidade de garantias como hipotecas, fianças e contratos de patrocínio ou distribuição já firmados) –, porque seleciona num edital de apoio a fundo perdido justamente os projetos que potencialmente poderiam se beneficiar desse programa? O banco estatal não deveria segmentar seus investimentos, direcionando os empréstimos reembolsáveis a projetos com potencial comercial e os recursos a fundo perdido aos projetos mais arriscados e “autorais”?

Por mais lógica que essa conclusão possa parecer, certamente não é a mesma lógica que rege a seleção pública do BNDES. Os critérios de análise estão claros em seu edital: valoriza-se o “diferencial competitivo de atração de público e de retorno financeiro da obra”, o “histórico de sucesso” da produtora e do diretor (sem que se defina exatamente o que se considera um “sucesso”) e a consistência do “Plano de Retorno Institucional para os investidores”. Ou seja, há uma clara prioridade a projetos de cunho comercial em seu edital, mesmo tendo o banco aberto uma linha de financiamento específica a essa produção.

Não surpreende, portanto, que após um ano de seu lançamento o PROCULT tenha financiado até o momento apenas um único filme: 174, a versão ficcional de Bruno Barreto para o famoso seqüestro do ônibus 174 no Rio de Janeiro. Afinal, quem optaria pelo empréstimo reembolsável (ainda que em condições das mais vantajosas) se o guichê ao lado oferece os mesmos recursos a fundo perdido?

A questão da lista recém-divulgada pelo BNDES, entretanto, vai além da opção por um cinema mais comercial. Mesmo que se assuma que a ênfase do BNDES está no desenvolvimento “Econômico”, e não no “Social”, ainda assim a lista de projetos pré-selecionados causa estupor por sua incongruência. Se é coerente com a opção por um cinema de grande público a escolha de diretores como Fernando Meirelles, Breno Silveira, Guel Arraes e Daniel Filho (que, juntos, levaram com seus filmes mais de 21 milhões de espectadores ao cinema desde 2000) ou a aposta no resgate de diretores de sucessos de outrora como Jeremias Moreira e Roberto Farias, fica difícil entender, porém, porque estão presentes na mesma lista nomes como Paulo Thiago, Sergio Rezende e Bruno Barreto, auto-proclamados diretores de sucesso cujos números recentes nas bilheterias insistem em desmenti-los.

Se tais diretores não podem ser considerados sucessos de público quando comparados aos seus colegas do primeiro grupo (nem tampouco poderia se dizer que suas obras sejam sucesso de crítica), volta a questão de qual a definição de “sucesso” que está em jogo para o BNDES. Sucesso de visibilidade na mídia, talvez, por mais que isso não tenha qualquer relação com os filmes que estão sendo produzidos?

Da mesma forma, são dignas de discussão as presenças de filmes como Blindness (orçado em US$ 25 milhões e que já captou mais de R$ 5.7 milhões através das leis de incentivo brasileiras), Birdwatchers e Plastic City. Se os acordos internacionais de co-produção dão o direito a tais filmes pleitearem fundos públicos brasileiros para sua produção, há que se discutir ao menos sob que condições e até que ponto nos interessa alocar parte dos já escassos recursos de nossa produção cinematográfica para o financiamento de obras estrangeiras. Em última instância, abre-se precedentes para que filmes como Hulk (que recentemente realizou parte de suas filmagens no Rio de Janeiro) também disputem tais recursos no futuro.

Por fim, há na lista de pré-selecionados até mesmo projetos que contradizem explicitamente o próprio objetivo do edital – caso de O Signo da Cidade, de Carlos Alberto Riccelli, que por já ter circulado em película por diversos festivais jamais poderia estar concorrendo a uma seleção de apoio à produção e finalização de filmes.

Não se trata aqui de pleitear a priorização de investimentos em projetos culturais em detrimento de outros mais comerciais. Mesmo porque, no capitalismo à brasileira em que vivemos, mesmo projetos de sucesso comprovado não conseguem aparentemente se viabilizar de outra forma (ou alguém conhece outro lugar onde uma continuação como Se Eu Fosse Você 2 – outro dos projetos presentes na lista do BNDES – não tem revertida em sua produção os dividendos do primeiro filme?).

Trata-se, isso sim, de exigir uma política pública séria, que defina uma lógica de produção consistente com nossas “especificidades, problemas e limitação”, com critérios claros a nortear seus investimentos e ações. O que não dá é para continuar com esse vale-tudo que está em vigor há tantos anos. Quando há interesses demais e critérios de menos em jogo, fica difícil levar a sério quando se fala em um “choque de capitalismo” para o cinema brasileiro.

editoria@revistacinetica.com.br


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