bloco de notas - novembro 2006

"Fenômenos" de bilheteria assombram o cinema brasileiro
por Leonardo Mecchi e Eduardo Valente
Nas duas últimas semanas, tivemos nada menos do que oito estréias de filmes brasileiros em salas de cinema, o que trouxe de volta distorções muito semelhantes às que já analisamos na já famosa série “Cinema brasileiro para quem?”. Canta Maria, por exemplo, foi lançado com 35 cópias e fez apenas 2500 espectadores em seu fim de semana de estréia; enquanto Vestido de Noiva estreou com 23 cópias e atraiu apenas 1600 pessoas – ambos obtiveram, assim, uma média de 70 espectadores por cópia (apenas como referência, a média de público no fim de semana de estréia dos filmes brasileiros em 2005 foi de 390 espectadores/cópia). Em grande parte, tais resultados nos parecem conseqüência de uma tendência recente – analisada no artigo Leis da Selva – de se injetar recursos para distribuição via editais de comercialização, sem um acompanhamento mais atento ao processo, como se o dinheiro por si só resolvesse os problemas de acesso ao público do cinema brasileiro.
Ambos os filmes citados foram contemplados na categoria de comercialização do último edital da Petrobras. O que parece acabar ocorrendo é que, de posse desses recursos e sem a orientação necessária, a produtora do filme cai no seguinte raciocínio: quanto mais cópias o filme tiver, mais pessoas irão vê-lo! E, aparentemente, a distribuidora contratada não se opõe à idéia, tendo em vista que o dinheiro a ser usado é de fundo perdido. Só que a matemática não é tão simples assim, e o número desproporcional de cópias com que tais filmes são lançados, sem uma pesquisa de mercado e público-alvo que o justifique, acaba gerando resultados como os que temos observado. Não é de hoje que o mercado sabe que lançamentos menores e mais direcionados podem resultar em mais espectadores: basta ver que, na mesma semana, O Céu de Suely (ganhador do mesmo edital) estreou com apenas 10 cópias, e conseguiu 6700 espectadores – ou seja, 670 espectadores por cópia, uma média que se não é excepcional, mostra uma adequação maior do tamanho do lançamento com o potencial do filme.
Já que estamos falando em matemática, façamos uma conta simples: cada cópia de um longa em 35mm custa em média R$ 7 mil. Multiplique-se isso por 35 e veremos que Canta Maria gastou R$ 245.000 apenas em cópias. Agora, imaginemos que, ao invés disso, a produtora tivesse feito uma única cópia e gastasse o restante do recurso na compra de ingressos para o filme e os distribuísse gratuitamente para escolas, ONGs etc... Com esse dinheiro, seria possível bancar 29.750 ingressos (com o preço médio do ingresso a R$ 8,00). Ou seja, o filme teria garantido um público 12 vezes maior do que o que atingiu!!! Obviamente a coisa toda não é tão simples assim, e nem se propõe aqui que o ingresso subvencionado seja a única maneira de fazer com que filmes brasileiros sejam assistidos. No entanto, este exercício serve apenas para demonstrar que é necessário que nossos produtores invistam com mais responsabilidade e criatividade os recursos disponíveis para seus lançamentos, pois, caso contrário, continuaremos a produzir filmes que ninguém vê... independente de quantas cópias façamos destes.

Lições de cinema em casa
por Eduardo Valente
Vendo o DVD de A Teia de Chocolate (Merci pour le chocolat), filme de Claude Chabrol que ficou inédito nos cinemas brasileiros, fui lembrado mais uma vez do poder abrangente do DVD como mídia, e como ele pode permitir uma mudança de relação do espectador com a matéria fílmica. A edição tem extras extremamente interessantes: ao invés de faixa de comentário no filme todo, Chabrol comenta momentos específicos do filme – e, como é típico de sua índole, ele o faz com uma clareza e frieza de análise, e ao mesmo tempo uma paixão extrema com relação à construção da imagem/som cinematográficos. É cristalina sua análise de enquadramentos, movimentos de câmera, jogo entre palavra e imagem, raccord, etc. Confesso que aprendi mais sobre direção de cinema vendo estes extras do que em anos de faculdade. Há ainda um making of, igualmente cerebral, com imagens preciosas do set em andamento, e da colaboração de Chabrol com Isabelle Huppert ou com o diretor de fotografia Renato Berta. O DVD, quando usado desta maneira, pode ser uma fascinante ferramenta de estudo de cinema – e neste sentido é exemplar o trabalho que os franceses (sempre eles) costumam fazer nos extras de seus filmes, priorizando o pensamento e o desvendamento da magia do fazer cinema sobre o espetáculo da celebridade.

Vida além da Mostra: o divino e a arte
por Leonardo Mecchi
Em uma maratona diária de três a quatro filmes, resta ao crítico muito pouco tempo para refletir e escrever sobre os filmes que assistiu. Dessa forma, faz-se necessário selecionar muito bem, dentre aqueles conferidos, as obras merecem ser discutidas e aquelas que podem (e, por vezes, devem) ser ignoradas. Por isso pode parecer estranho ao leitor que, entre tantos filmes vistos, eu resolva usar meu escasso tempo para escrever sobre... um show. Mas, nem só de cinema vive um crítico – e, na realidade, distanciamentos estratégicos e aproximações com outras artes são fatores fundamentais para enriquecer a relação com o cinema e potencializar a capacidade analítica. Por isso mesmo, abri mão de alguns filmes num domingo para conferir um espetáculo realizado no Teatro Alfa em homenagem a Villa-Lobos, Pixinguinha, Luiz Gonzaga e Tom Jobim – quatro pilares fundamentais não apenas da música, mas da cultura brasileira como um todo. A interpretar suas canções, músicos como Paulinho da Viola, Ney Matogrosso, Dominguinhos e o Quinteto Villa Lobos. Uma verdadeira noite de gala.
Mas o que o leitor-cinéfilo tem a ver com tudo isso? Para além do fato do espetáculo se utilizar do cinema para contextualizar aquelas obras, através de projeções de imagens e trechos de documentários sobre os homenageados, houve um momento em especial que fez a ponte entre a música e o cinema, e entre ambos e algo maior. Esse momento singular foi a execução, por um quinteto de sopros, da ária da Bachiana no 5 de Villa-Lobos, tornando impossível para o cinéfilo não recordar de Glauber Rocha, em especial do encontro entre Rosa e Corisco em Deus e o Diabo, um dos momentos mais marcantes da história do cinema brasileiro. De repente, lá estavam, lado a lado, Villa-Lobos e Glauber Rocha, talvez os dois maiores gigantes de nossa cultura. Naquele momento, uma porta se abriu para a experiência do sublime, e então chorei ao som de uma das mais belas músicas já compostas. Chorei copiosamente, chorei como há muito não chorava. Chorei a genialidade de Glauber e Villa-Lobos, chorei a beleza da arte e da vida, chorei a dor e a alegria do brasileiro, chorei aquele momento único e sublime. Anestesiado que estava pelo excesso de filmes (e por serem exceções aqueles que realmente honravam o cinema), esse choro redentor me trouxe de volta a fé na arte, no cinema e em sua capacidade única de elevar o espírito humano ao divino – como talvez só Abel Ferrara e Manoel de Oliveira tenham sido capazes na Mostra.

Vida além da Mostra II: mise-en-scène e interpretação no palco
por Eduardo Valente
Assim como aconteceu com o colega Leo Mecchi (ler acima), a música também me fez tirar uma folga durante a Mostra (na verdade, foram duas, mas vamos tratar aqui apenas de uma delas). Fui à Curitiba por 24 horas, em plena semana final do evento, para ver o show que lá foi realizado dentro do TIM Festival – na pedreira, que eu desconhecia, e que é talvez o mais incrível cenário onde já testemunhei um evento do tipo. Depois de um bom show da Nação Zumbi (já bastante vista), veio a seleção internacional, que me chamava mais a atenção especialmente por ser só formada por shows que nunca pude ver.
Começamos com o DJ Shadow, cujo trabalho conheço pouco – mas com bastante gosto por esse pouco. Estruturalmente, se trata de uma modalidade ainda recente (e um tanto curiosa) de espetáculo em grande escala: milhares de pessoas olhando para um cara só, que evolui por trás de pickups e notebooks, soltando beats e samplers. Contando com o tédio que pode sempre existir nessa configuração, as músicas de Shadow são sincronizadas com imagens no telão de vídeo – que “ilustram” cada canção com imensos videoclipes (além da presença em boa parte do show de um MC para dar “calor” ao contato com o público). Embora de inegável controle do seu meio, confesso que achei a combinação fria, onde a sincronização do telão com a música dava uma esquisita aparência de playback àquilo tudo. Para além disso, a dimensão de tudo parecia desproporcional: o palco, o espaço da pedreira, nada ajudava à imersão que as melhores músicas de Shadow (como a hipnótica Organ Donor) pedem. Finalmente, os vídeos pareciam por demais literais, interpretando a música (quase sempre com mensagens anti-Bush), dando pouco espaço para a imaginação. Se Shadow pareceu pouco satisfatório no momento do show, a sensação só aumentaria depois do último show da noite, dos Beastie Boys. Com uma platéia já um tanto cansada (até pela maratona ter se dado, na maior parte, sob chuva), foi impressionante ver na performance dos “3 MCs e um DJ” (título de uma de suas músicas) tudo que tinha faltado em Shadow. Para começar, um virtuosismo old school na maneira de tocar do DJ Mixmaster Mike: abusando dos scratches, do manuseio de vinis ao vivo, dos improvisos e mudanças de andamento, o homem mostrou o que é um espetáculo pensado de fato para o acontecimento único do ao vivo. Extremamente afiados (afinal, são quase 20 anos de estrada), os MCs reagem ao Mixmaster, dialogam, se divertem acima de tudo (o humor do grupo não diminui nem um centímetro ao vivo, pelo contrário). Não há necessidade de uso de telão algum, nem de diminuição do palco: é só a energia de três caras que não param quietos e um músico genial. No prêmio de mise-en-scène da noite, a simplicidade quase “manoeldeoliveiriana” dos Beastie Boys não teria par.
Já o prêmio de melhor interpretação, também era fácil de escolher: a veteraníssima Patti Smith parece uma daquelas figuras que, simplesmente ao tomarem o palco, já mostram do que é feito uma lenda do rock. Entre a voz melódica e aveludada, sem perder a agressividade e a paixão, e a simplicidade do arranjo roqueiro básico (guitarra, baixo, bateria, eventualmente teclados), o show dela e seu grupo foi um espetáculo que lembrou outros que já testemunhei (como o incomparável de Neil Young e Crazy Horse no Rock in Rio 3, ou Jimmy Page/Robert Plant na Apoteose): um testemunho ao vivo de uma história da música. Heresia das heresias foi ver esta deusa “abrindo” para os insossos e repetitivos Yeah Yeah Yeahs, comparação especialmente triste por terem este uma cantora à sua frente. Over total, Karen O era um paralelo perfeito aos vídeos de Shadow: tentando compensar por algo cuja ausência não pode ser suprida. Não teve jeito: caras e bocas, fantasias, gritos incessantes (e irritantes) – nada disso deu um centésimo do sentimento musical de uma canção do show de Patti Smith. Na pedreira de Curitiba, foi goleada de dois a zero para os veteranos.



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