bloco de notas - março/abril
2008
Pornô-autópsia por
Luiz Soares Júnior Chamar um filme de sexo
de "explícito" é uma redundância: a essência
da pornografia é ser explícita, é esta operação
de tudo mostrar, de nada ocultar. Cinema é uma arte que nasce na dialética
da claridade e da escuridão, do foco e da elipse, do fora de campo e do
contracampo. Estas oposições, máscaras da relação
mais primordial entre ausência e presença que subjaz a toda representação,
artística ou não, é fundamental ao cinema. Mas o cinema pornô
não mostra propriamente, porque mostrar exige que algo esteja, a princípio,
oculto, que não esteja dado - a princípio e por princípio.
Fazer cinema é justamente este "trazer à luz", este mostrar
algo que não estava dado em primeira mão, é ver o que a princípio
ninguém vira, é enfocar a nossa realidade comezinha do cotidiano
sob um outro olhar, um olhar que recorta e devolve ao horizonte da vida aquela
parte modificada. O pornô que, por definição, é explícito
(pornográfico), agora então atingiu a estratosfera desta condição.
Os filmes pornôs de hoje, ao contrário dos seus ingênuos
antepassados dos anos 70 e 80, são verdadeiras aula de anatomia comparada:
escancara-se minuciosamente um corpo para o olhar frio da câmera, com direito
a órgãos genitais sendo dobrados e desdobrados em closes anamórficos
diante dos analistas em seus panóptico (nós, em nossos sofás).
Há aí uma perversa operação psíquica que é
a mesma em ação no ato do conhecimento, do "quebrar o brinquedo
pra ver do que ele é feito", ou de "matar o ganso dos ovos de
ouro". O grau de refinamento desta "mostração" absoluta,
desta vivissecação do corpo é complementado por uma infinitude
de closes e planos-detalhe, enfoques que estilhaçam a figura humana em
partes - partes analisáveis, digeríveis, estudáveis, como
numa lição anatomia, na qual perde-se a noção da totalidade
(síntese significativa, orgânica, humana) em prol de uma representação
analítica, reificada da figura do homem. Não há planos gerais
nestes filmes; não há, portanto, o acesso a um corpo detentor de
um rosto e de um desejo que se expressa de forma holística, a fixação
de uma identidade - e da experiência dela tributária. Tudo nos chega
triturado, fragmentado, mastigado. Literal e metaforicamente - se é que
cabe uma metáfora em tal caso.
Aulas
de cinema, em casa por Eduardo Valente
Tem muita gente que não se importa com os extras dos
DVDs, mas eu particularmente sempre achei que eles eram uma possibilidade riquíssima
de acesso ao processo de realização e pensamento dos realizadores
de um filme. Claro que o mais importante continua sendo o filme, e nesse sentido
realmente importa a qualidade da cópia existente, mas acho um tremendo
desperdício de espaço de informação e de comunicação
com o espectador (para não falarmos aqui em teóricos, críticos,
estudiosos) quando um bom filme sai em uma edição sem qualquer extra.
A prova de que esta constatação não se refere apenas aos
lançamentos mais "arriscados" é o recém-lançado
DVD de Ligeiramente Grávidos, de Judd Apatow. Claramente um lançamento
pensado pela sua distribuidora para satisfazer muito mais o chamado "espectador
comum", seu alvo principal, ainda assim a edição é uma
das mais ricas em conclusões sobre o processo de um realizador. Além
de uma trilha de comentários reveladora muito mais no seu formato do que
no seu conteúdo (mais, afinal, forma é conteúdo!), o DVD
tem extras fascinantes como as cenas "extendidas", que revelam o método
de trabalho de Apatow com seus atores e a sua noção de tempo cômico
(e que ajuda a entender como ele fez duas "comédias leves" que
duram quase duas horas e meia cada), ou ainda o making of de uma seqüência
específica e pouco "essencial" no filme (a da montanha-russa,
logo no começo) que revelam a que ponto Apatow é um fiel da idéia
de "perder o amigo - ou o ator - mas não perder a piada".
Piratas
de arte por Cléber Eduardo A
pirataria de filmes não se contenta mais apenas com as superproduções e com os
filmes coadjuvantes dos grandes estúdios americanos. Também não quer saber somente,
entre os filmes brasileiros, das histórias capazes de vender milhões de unidades.
O mercado informal de DVDs, ao menos na região dos Jardins, em São Paulo, também
está se segmentando. Talvez por se situarem nas proximidades do circuito de arte
da região da avenida Paulista, os vendedores decidiram também investir em títulos
em geral sem lugar nos multiplex, mas com passado recente de exibição nas salas
do corredor cinéfilo da cidade: há cópias dos europeus Lady Chatterley,
4 meses 3 Semanas e 2 Dias, O Caçador de Pipas e A Espiã,
assim como do brasileiro Baixio das Bestas. Nenhum deles teve popularidade
considerável, no máximo tornam-se comentários de um segmento restrito. Mesmo esse
segmento, porém, é público-alvo. Fácil desconfiar porque. Se alguns filmes justificam
o investimento do espectador no ingresso, porque são filmes que ele "não
pode deixar de ver", a maioria deixa o espectador receoso de gastar seu dinheiro
sem convicção. Pois os vendedores de piratas atacam nas duas frentes: há quem
saia das salas e compre o filme já visto, porque gostou e quer tê-lo em casa,
mas também quem compre aquele pelo qual não pagaria a entrada aos preços atuais
– ou ao menos teria muitas dúvidas.
Mais
coisas sobre Império dos Sonhos por
Eduardo Valente Por uma série de motivos que não
vêm ao caso, eu acabei perdendo a (breve) passagem de Império dos Sonhos,
de David Lynch, pelas telas de cinema no Rio (e em SP). Eu bem sabia que isso
é absolutamente imperdoável para qualquer crítico com interesse mimimamente sério
no cinema contemporâneo, mas isso se torna ainda mais grave quando chega esta
hora do final de ano de fazer “listas de melhores” (o que não fazemos aqui na
Cinética, mas que eu faço para a Paisà, onde colaboro eventualmente, e para o
prêmio Jairo Ferreira – que vem aí). Como eu sentia que estaria mentindo ao dizer
quais eram os melhores sem sequer passar o olho no filme de Lynch, nesta semana
eu quebrei uma regra pessoal vendo o filme pela primeira vez em DVD (como curiosamente
aconteceu ano passado, em circunstâncias parecidas, com aquele que eu acabei considerando
o melhor filme lançado em nossos cinemas, Miami Vice, de Michael Mann).
Eu bem sei que poderei rever o filme em breve no cinema, nas mostras retrospectivas
de melhores do ano que aportam no Rio e em SP em março (como, de novo, foi o caso
com Mann ano passado), mas, por pelo menos dois motivos, não deixou de ser uma
curiosa experiência ver o filme de Lynch pela primeira vez na edição americana
do DVD, disponível em ao menos uma locadora carioca. Primeiro,
por uma questão que de novo espelha algo da minha experiência com Miami Vice
no ano passado: o filme de Lynch, tal qual o de Mann (embora com interesses muito
distintos) mergulha de cabeça no mundo do cinema captado em digital. Isso significa
dizer, da forma como são exibidos os filmes em nossos cinemas hoje (ou em cópias
35mm realizadas com um cuidado no mínimo frágil pelos laboratórios brasileiros;
ou em cópias digitais baseadas em matrizes de pouca qualidade ou exibidas em equipamentos
sem a tecnologia de ponta em definição de imagem), que ambos os filmes foram adulterados
de alguma maneira ao serem passados no Brasil em cinema. No caso de Lynch, eu
ouvi muitas referências nas críticas que li ao “trabalho com a baixa definição
e a imagem suja” (assim como se falava da “granulação em Miami Vice” no
ano passado). Só que as cópias em DVD de ambos os filmes absolutamente renegam
que esta imagem suja, num caso, e a granulação, no outro, fossem opções autorais
dos realizadores, e sim resultado das cópias em que os filmes foram assistidos.
É fácil saber onde está o “erro”, afinal no DVD não há adulteração após a geração
da matriz, realizada com supervisão muito próxima dos diretores (afinal, eles
sabem que hoje é o DVD que “eterniza” o filme): todas as cópias são reproduções
de um mesmo material, sem a mão de terceiros (como nossos laboratórios ou exibidores
digitais). No caso de Lynch, o cuidado com a imagem do DVD é tamanho que há um
menu disponível antes da exibição do filme, cheio de telas para ajuste de contraste,
cores e brilho do televisor de quem assiste (única última “intermediação” possível)
– realmente não me parece algo que daria em um resultado descuidado frente às
intenções do autor. E na minha TV, após os ajustes efetuados, vi um filme que
assume inúmeras das características do digital, e brinca com elas de maneira impressionante,
mas que em nenhum momento é “sujo” ou “mal definido”, como se disse das exibições
em película ou digital que se fez nos cinemas brasileiros. E aí é que a porca
torce o rabo: será que sem ver estes DVDs estamos realmente “entendendo” estes
filmes nas suas implicações estéticas?? A segunda observação
curiosa é que o DVD americano duplo traz, entre outros extras, uma hora e meia
de material filmado para o projeto sob o título “Other things that happened” (“Outras
coisas que aconteceram”). O título não tem nada de aleatório, e diz muito de como
Lynch trabalha, em especial neste filme: afinal, não se trata aqui do já batido
conceito de “cenas deletadas” (onde ao vermos um material tentamos entender porque
ele saiu do filme, de que maneira o filme mudou sem ele), mas sim de “outras coisas
que aconteceram” com aqueles personagens, com aqueles ambientes, e que ao vermos
logo depois das 3 horas de coisas que já aconteceram, vão se misturando na memória
e no entendimento, tal e qual funciona aliás o filme como um todo. Algumas são
variações sobre cenas que vimos (as prostitutas nas ruas de LA), outras são ampliações
(a conversa de Laura Dern com o esquisito detetive), e outras criam sentidos e
espaços absolutamente novos (como a cena no tal circo dos Balcãs ou uma longa
cena de diálogo entre Dern e Nastassja Kinski – que no filme como vimos só aparecia
de relance nos créditos finais). Com isso, a visão de INLAND EMPIRE no
DVD nos faz de fato, “ver outro filme” – o que ajuda a entender porque um fã americano
chegou a se sentir instado a editar o seu próprio filme, usando partes do DVD
do filme e destas “outras coisas”, criando uma chamada “Edição Breve” de 90 minutos
de duração, a qual ele chegou a exibir em sessão fechada num cinema (mais sobre
isso pode ser lido aqui e
aqui). editoria@revistacinetica.com.br
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