bloco de notas - março 2007
Começou
o ano no cinema brasileiro por Cléber Eduardo
O
cinema brasileiro começou 2007 em março – assim como 2006 havia começado, em Tiradentes,
com Serras da Desordem, de Andréa Tonacci. Primeiro, com Cão sem Dono,
de Beto Brant e Renato Ciasca, exibido no Jairo Ferreira. Um Brant cada vez mais
"limpo" de trique-trique, cada vez mais seco, cada vez mais disposto
a olhar o que acontece e o que não acontece à frente de sua câmera, cada vez mais
próximo dos seres, mais liberto de amarras de organização, operação essa de enorme
risco, com certo grau de experimentalismo na construção das cenas, sempre no limite
de se dissolverem. Foi pura coincidência, na exibição dessa noite, Tonacci ganhar
o prêmio. Porque, como ele próprio, Tonacci, concordou comigo, o Cão sem
Dono, em alguns procedimentos, retoma determinadas operações cênicas do Bang
Bang (já havia essa presença em O Invasor e Crime Delicado),
mas evidentemente que sem a proposição do choque – e sim, no máximo, da recusa
em conciliar com o espectador,seja no ritmo ou na organização dos
acontecimentos. Agora, no É Tudo Verdade, também em março, tem Santiago.
O raio x de um filme abortado, a semente da auto-desconfiança plantada em um documentário
que desconfia de si mesmo e do documentário de forma mais ampla, mea culpa
artístico, salientando uma tendência recente do documentário brasileiro –
o documentário que nasce de uma "imagem", que se apóia em imagens de
outro momento, ou mesmo de outros realizadores. Na linha O Homem Urso,
de Herzog, guardadas as ENORMES distinções. Mas também na linha Cabra Marcado
para Morrer, de Eduardo Coutinho, ou mesmo de Serras da Desordem, de
Andrea Tonacci (sempre ele). O que poderemos ter, nos próximos 9 meses,
com a mesma ambição? Digo, o que está previsto, fora um novo Bressane, um novo
Walter Lima Jr? Há um Belmonte em andamento, Lais Bodanski em um projeto com aparentemente
nada a ver com Bicho de 7 Cabeças, Carlão já com material filmado de um
novo longa, Barcinski estreando com produção forte, e entre os já estreados mas
ainda não vistos no Brasil, temos Paulo Caldas dando continuidade a seu percurso
e Chico Teixeira estreando em longa. Tem ainda o Baixo das Bestas, que
só será visto em 2007 em SP e Rio, e que é também um filme por demais estranho,
incômodo, permeado por soluções cênicas originais, algumas muito parecidas com
a maneira do Jia Zhang Ke iniciar e terminar alguns planos. Filme lindo, duro,
cruel e estetizante, ambíguo e paradoxal em sua aproximação com os dejetos sociais
– que traz um olhar bastante complexo e uma forma de filmar nada óbvia para o
cenário contemporâneo. São todos projetos de "boa expectativa" (não
necessariamente alta, mas certamente boa). Mas realmente tenho a intuição de que,
goste-se muito ou desteste-se, Cão sem Dono e Santiago injetam algo
novo, propõem um reaprendizado de olhar e da imagem no cinema brasileiro, trabalhos
empenhados na operação de salientar como o diretor olha o que filma
e como o espectador pode olhar o que foi filmado – operações essas das mais
instigantes no cinema brasileiro recente. Essa é uma impressão instantânea. Ao
fim de 2007 verei se será confirmada pela maior distância e pelos outros filmes.
No momento, a impressão é forte.
Robert
Bresson e uma lição de curadoria por
Eduardo Valente Assim como no Brasil qualquer
um que aponte a câmera indiscriminadamente por aí já gosta de ser chamado de “cineasta”,
também se usa muito o termo “curador” para falar de pessoas que pouco fazem além
de escolher aleatória ou preguiçosamente alguns filmes e os exibir em mostras
ou festivais. Aí, de vez em quando vem uma mostra que nos recorda exatamente do
poder do termo (e do trabalho envolvido), quando feito com um mínimo de inteligência
e sensibilidade. Pude freqüentar bem pouco a mostra Robert Bresson e o Cinema
Contemporâneo (que passou pelo CCBB do Rio nas últimas semanas, e em breve aporta
na mesma instituição, em suas filiais de SP e DF), mas ao tirar uma tarde para
rever Pickpocket (57), de Bresson, seguido de Claire Dolan, de Lodge
Kerrigan (98), tive uma dessas experiências ricas de perceber um curador inteligente
escolhendo e programando filmes. A mostra em si já parte de uma idéia muito boa
de uso dos nossos bastante limitados acervos de cinema internacional (especialmente
o contemporâneo). Mas, mais do que apenas uma “sacada” que poderia ser mal usada,
ver os dois filmes na seqüência fez pensar muito numa série de questões da apreensão
do mundo pelo cinema, por dois autores distintos em momentos históricos igualmente
diferentes (no cinema e no mundo). Nenhum dos dois filmes exige o conhecimento
do outro para ser bem apreciado, mas a experiência de vê-los em conjunto nos faz
ir além deles mesmos e permite pensamentos efetivamente originais. Pouco se
pode exigir além disso numa mostra de acervo – e me deu pena não ter podido
ver outras das aproximações ali propostas (e, por força da correção, convém
citar o curador: João Juarez Guimarães). Que o pessoal de São Paulo e Brasília
aproveite! Uma noite para ser lembrada
por Eduardo Valente Não
é exagero dizer que há alguns meses os editores de Cinética,
Cinequanon, Contracampo, Paisà e Teorema esperavam ansiosos a chegada do
dia 12 de março, quando se realizou o I PRÊMIO JAIRO FERREIRA. A
ansiedade era tanta, aliás, que podia se julgar quase inevitável
que a noite não satisfizesse todas as expectativas - no entanto, o que
aconteceu no CineSesc foi o contrário disso: as expectativas foram todas
superadas, e muito! Isso se deveu, mais do que qualquer coisa, ao clima reinante
desde antes da abertura da sala: uma alegria esfuziante no rosto de organizadores,
convidados e amigos, todos sabedores que o que se celebrava ali (a paixão
pelo cinema, claro, mas antes de tudo a amizade e o desejo de construir algo junto,
sabendo que o fazer coletivo não precisa anular as individualidades) é
algo muito especial, que faz nosso coração bater todo dia e nossas
revistas serem atualizadas/editadas a cada semana/mês/bimestre. Mais do
que o prêmio em si, celebrou-se ali uma crença partilhada em maior
ou menor grau por todos os presentes: a de que este trabalho é importante
e faz sentido - e nisso cada pessoa presente foi importante em nos reafirmar essa
idéia. Como se isso não bastasse, a noite foi se delineando cada
vez melhor, desde a sincera e emocionada fala de Jane, irmã do nosso homenageado
(que ainda nos ofereceu uma "presentificação" do querido
Inácio Araújo, ao citar um texto dele), até o discurso de
cada um dos vencedores do prêmio. Aqui eu preciso admitir que, embora eu
não tenha votado em dois deles, a lista final de vencedores não
podia ter sido mais coerente com o espírito que se desejava que o prêmio
adquirisse já na primeira edição: começando pela alegria
das organizadoras da mostra Agnès Varda e de Paloma Rocha (principal responsável
pela restauração da obra de seu pai, Glauber, e seu lançamento
em DVD - e que, em mais uma feliz coincidência, tinha sido levada a São
Paulo naquela noite por um outro evento) por terem seu trabalho reconhecido em
categorias quase sempre esquecidas por outros prêmios; passando pela celebração
de Jean-Thomas Bernardini, dono da Imovision, que apostou em Amantes Constantes
(apesar das 3 horas em preto e branco); e culminando com a singeleza contida da
fala de Andrea Tonacci, que ao receber o prêmio de Filme Brasileiro de 2006,
emocionou todos nós ao dizer que "sentia que alguma coisa especial
estava acontecendo ali, naquela noite". É importante dizer ainda,
sendo uma festa "de cinema", que o cardápio de filmes mostrado
não podia também ter sido mais adequado. Primeiro, o curta do próprio
Jairo, O Guru e os Guris, descoberto por vários naquela noite: menos
escolhido do que imposto a nós (pela lamentável realidade de ser
o único filme de Jairo atualmente projetável em boas condições),
o título já pode indicar a adequação do filme ao evento.
Celebração de um amante incondicional do cinema, o filme de Jairo
acabou espelhando nossa própria intenção ao escolhê-lo
como figura de referência do prêmio - e, na sequência antológica
na mesa do bar, nos fez pensar inevitavelmente em tantas "batalhas"
longuíssimas que já travamos nos mesmos ambientes. Depois, o cinema
de hoje e de amanhã surgiu com força no novo filme de Beto Brant
(co-dirigido por Renato Ciasca), Cão sem Dono, que certamente ainda
dará muito o que falar aqui e em todas as revistas que partilham a criação
do prêmio. Não poderíamos ter sido brindados com um filme
mais corajoso, sem concessões e desafiador, e ainda mais com sua primeira
exibição interplanetária - o que, mais do que um presente,
nos parece um fantástico aceno de respeito de um realizador pela instituição
mesma da crítica. Em suma, foi uma noite e tanto...
Antes
e depois do "Jairo" por Eduardo Valente
Como relatei acima, a noite no CineSesc foi mágica
- mas ela não seria completa sem os eventos que a antecederam e procederam,
porque o espírito de integração e respeito entre as revistas
não se celebraria só naquele "ambiente público",
pois não é puro jogo de cena. Por isso, tudo começou
no domingo, dia 11, com um emocionante campeonato de futebol de salão entre
4 das 5 revistas envolvidas (a portoalegrense Teorema não conseguiu enviar
representantes em número para escalar um time - embora seu editor Marcus
Mello tenha sido uma das presenças mais celebradas na segunda à
noite). Lá não faltou drama (incluindo uma séria contusão
do editor da Contracampo, Ruy Gardnier, que gerou a maior polêmica de todo
o evento: foi ou não culpa de uma dividida com a revelação
cinequanônica Anahi Borges?), nem muito menos comédia (dividida em
doses irmanadamente iguais entre as redações). É claro que
talvez fosse um pouco falacioso da minha parte dizer que o título era o
menos importante naquele certame alegre (onde nossa Lila Foster entrou com o isoporzinho
mágico da cerveja...), mas como seguidor fiel que sempre fui de São
Romário (homem que me fez tirar uma foto com a camisa do Flamengo em 1995!),
é verdade que a artilharia vencida por este humilde "filho de peixe"
mitigou a dor de um injusto terceiro lugar (escusas negociações
da tabela fizeram com que a Cinética jogasse seus dois compromissos mais
duros em partidas consecutivas - sem descanso ou reservas, depois do sumiço
de nossos dois "prometidos" goleiros, Felipe Bragança e Ricardo
Calil). Mas, festa mesmo foi a que aconteceu depois do prêmio, noite
adentro no Sujinho - embora não no tradicional, que não pôde
nos reservar uma mesa com mais de 50 lugares. Mesmo que a mudança de lado
da rua tenha nos custado a companhia do xiita Paulo Sacramento e que a superlotação
inesperada tenha impedido que Beto Brant e equipe se juntassem a nós, a
noite foi histórica - também, com um garçom sósia
do Jean-Claude Bernadet e uma mesa com Carlão Reichenbach, Andrea Tonacci
e Cristina Amaral... Tinha tanta gente, mas tanta gente, que nossos amigos mais
"distantes" (como o gaúcho Marcus Mello ou o mineiro Marcelo
Miranda) saíram de Sampa reclamando não
terem conseguido conhecer todos os colegas cariocas ou paulistas ali presentes.
Tudo bem, apenas mais um bom motivo para voltarem mais e mais vezes para mais
e mais celebrações da amizade que nasceu nas salas de cinema.
Isso
sim é um "em processo" por Eduardo
Valente Nas virtuais páginas do seu
blog, aonde tem dividido com seus leitores suas mais variadas paixões
nos últimos anos, Carlos Reichenbach, o Carlão, tem colocado alguns
relatos emocionantes do processo de criação de seu mais recente
longa, Falsa Loira. As discussões que faz atualmente, sobre o processo
final de montagem, são verdadeiras aulas de cinema, que saem apenas do
campo da teoria e mergulham no complexo processo de fazer, no dia a dia, um filme
vir à tona. Não deixa de ser curioso que Carlão, um dos cineastas
que mais perdeu público com a migração do cinema brasileiro
de uma matriz de contato popular no fim dos anos 70 e começo dos 80 para
o "cinema de bistrô" do século XXI, tenha encontrado na
internet, e especialmente no território dos blogs, um ponto de expressão
e contato único com uma comunidade fiel de leitores e aficcionados que
fazem dele um dos mais influentes cineastas entre os jovens cinéfilos (vários
deles, futuros e atuais realizadores) de São Paulo, hoje. Ele é
a prova viva (e muito viva, graças a deus) de que cinema não se
mede pelos números de bilheteria.
Isso
sim é um prêmio por Eduardo Valente
De surpresa, como tudo que acontece no SBT atualmente, surgiu
na tela na madrugada de sábado (3 de março) para
domingo a transmissão do Scream Awards, premiação americana
dedicada aos filmes, programas de TV, histórias em quadrinho - em suma,
tudo que tenha a ver com os universos de horror, ficção e fantasia.
Para além da alegria de podermos ver nestes dias uma cerimônia de
prêmios realmente divertida, que não se leva a sério demais
(inclusive com uma clássica montagem de "homenagem aos mortos do ano"
apenas com cenas de filmes de horror), e onde recebem aplausos de pé William
Shatner e Marilyn Manson, existe algo de bonito em ver o lado "escondido"
do cinema americano, muitas vezes o seu melhor, ser honrado e homenageado. Entre
os indicados, estavam filmes como Terra dos Mortos e Viagem Maldita,
dois dos grandes filmes ignorados do ano passado, além da série
Mestres do Horror. Foi dado ainda um prêmio especial de "visionários"
para Quentin Tarantino e Robert Rodriguez, que exibiram cenas inéditas
de seu filme de horror Grindhouse. No discurso de ambos, duas frases que
falam muito do desprezo da Hollywood "artística" pelo cinema
de gênero: depois que Tarantino disse que seus "dias de Oscar já
tinham ficado para trás", Rodriguez mandou um bom e velho "Fodam-se
os Oscars!" (palavrões eram norma nos discursos) - o que mais do que
uma simples piada ou ofensa é uma forma bem sucinta de falar da relação
de quem se importa com cinema e com os filmes e os "prêmios de bom
gosto".
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