bloco de notas - julho 2006

Um clipe bem animado
por Eduardo Valente
Um dos efeitos mais curiosos da linguagem da animação no audiovisual é um certo laissez-faire moral que ela parece permitir. Está entre os clipes mais pedidos da MTV Brasil, no momento, o de Shake That, música de Eminem com participação de Nate Dogg. Nele, versões em desenho animado dos dois rappers passeiam por todo um submundo da exploração do corpo feminino, onde os ângulos e closes de seios fartos e bundas balançantes ultrapassam até mesmo as nossas conhecidas coberturas carnavalescas (outro momento onde o botão "moralismo" da TV parece ser desligado, aliás). Não só há as hiperrealistas partes corporais em exibição, como simulações nada disfarçadas de consumo de drogas (maconha), sexo oral e prostituição como uma coisa cool. Os responsáveis pelo clipe (Plates Animation) certamente aproveitaram-se desta distensão que parece haver no caráter perturbatório das imagens, quando animadas - e brincam seguidamente com isso, como nos seios animados "fora de foco". Tremendo caso de subversão das regras para escapar da censura - já que alguns clipes mais "animadinhos" (neste caso, no sentido figurado) andaram sendo impedidos de passar, ou cortados, nas MTVs do mundo.

YouTube.com
por Cezar Migliorin
YouTube é a TV que eu quero. Uma medição inteligente entre o acúmulo infindável de imagens e os nossos interesses.
Cineastas, VJs, jornalistas, mediadores, artistas, arquivistas – todos no mesmo lugar.
A TV dos homens quaisquer.
As playlists são o zapping inteligente.
Zapping significa que não preciso fazer escolhas o tempo todo. Não quero interatividade o tempo todo.
Mais importante que o autor é a mediação, a avaliação (melhores avaliados da semana, piores do mês, etc.) feito por outros visitantes e as playlists.
As playlists multiplicam as medições.
Quem assiste se torna o programador, e assistir é uma forma de programar.
Múltiplos tipos de acesso: links enviados pos mail, audiência, playlists, palavras-chave, autores, recém lançados, etc
São mais de 8 mil uploads/dia.
O audiovisual em comunicação – o texto do Fulano que se conecta com a cabeçada do Zidane, que se conecta com o vídeo da violência do Materazzi, e depois com o rap francês “cabeçada”.
A TV em rede.

Tratamento de choque
por Eduardo Valente
Saiu a lista dos longas brasileiros que concorrerão no Festival de Gramado deste ano, e não se pode disfarçar a surpresa. Depois de muitas piadas sobre a qualidade da seleção (e consequentemente da premiação), especialmente nos últimos dois anos, o Festival convidou o crítico José Carlos Avellar para ser uma espécie de conselheiro curatorial geral - sendo que uma grande mudança para este ano foi unificar as categorias de documentário e ficção numa só, de longa brasileiro. Não se sabe se foi exclusivamente fruto da interferência de Avellar (até porque o número de filmes inscritos, 12, foi bastante pequeno e indica que a maioria dos produtores brasileiros tem fugido da exposição de Gramado), mas a diferença um ano depois não poderia ser maior: entre os 5 filmes que concorrem, estão pelo menos dois dos mais interessantes e corajosos exercícios de cinema que o Brasil produziu recentemente - Atos dos Homens, de Kiko Goifman (injustamente não premiado no É Tudo Verdade) e Serras da Desordem, de Andrea Tonacci. É no mínimo curioso imaginar a reação da platéia habitualmente star-friendly da serra gaúcha ao documentário minucioso e de tempos largos de Goifman, e ainda mais à ousada mistura de registros do grande Tonacci em sua volta ao cinema de longa-metragem. Por sorte, o único concorrente inédito no Brasil, Sonhos e Desejos, de Marcelo Santiago (os outros são o documentário Pro Dia Nascer Feliz, de João Jardim; e a ficção Anjos do Sol, de Rudi Lagemann, sobre prostituição infantil e sem grandes nomes globais como protagonistas), tem Mel Lisboa, Sérgio Marrone e Felipe Camargo interpretando um triângulo amoroso nos tempos da ditadura militar - senão, Gramado corria o risco de sofrer uma crise de abstinência. Resta ver se esta guinada radical vai terminar com uma recepção boa ou se as sempre ativas vozes do middle brow nativo se erguerão gritando que "nem oito, nem oitenta"...

Lula vê melhor a Rede Globo
por Felipe Bragança
Tá aí, definido, o modelo digital da televisão no Brasil. Mais uma vez a política de manutenção do padrão de qualidade centralizador foi vencedora, deixando de lado as possibilidades de uma revolução democrática na maneira de produzir e difundir imagens no Brasil. Em ano de eleição, precisando abafar escândalos junto à grande mídia, o governo federal acaba por fazer um verdadeiro “acordo estatal” com o sistema centralizador de informações hoje vigente no país, optando por um sistema cujo valor está na hiperinflação do padrão de qualidade-e-definição e não numa redefinição da dinâmica de difusão, quantidade de canais e barateamento da emissão.
Bem comportado, foi quase patético ver o senhor Presidente Lula aparecendo durante a Copa do Mundo assistindo os jogos do Brasil numa sala do Planalto com uma grande TV digital patrocinada pela Rede Globo (com logo aparente e platinado!) como forma, segundo as palavras da emissora, “de demonstrar a qualidade da nova tecnologia ao presidente”. Esse “mimo global”, em rede nacional, só ilustra a situação de política da manutenção hoje vigente no país onde o audiovisual virou um braço privatizado das finanças públicas. Não deixa de ser piada-pronta a imagem de um presidente tendo uma demonstração da poderosa Rede Globo de como melhorar a qualidade da imagem nos próximos anos...
Mais uma oportunidade histórica perdida. Agora, é lutar nesse território demarcado e procurar pelas brechas que permitam uma reformulação, ainda que demorada, do capitalismo estatal praticado pela emissora platinada – e hoje re-assinado pelo estado brasileiro. Os tubarões continuam com a corda toda.

Clonagem eletrônica
por Eduardo Valente
Quarta-feira, 19 de julho. Passando por uma televisão de bar a caminho de casa, eu paro ao ver as imagens que transmitem o primeiro tempo de Vasco x Flamengo, no Maracanã. Sem ouvir o som da voz do narrador, as imagens apresentam todos os grafismos que me são familiares, seja nas fontes que dão o placar com os nomes dos times, seja no logotipo transparente da rede de televisão, no canto inferior direito. O olhar desatento demora para perceber o equívoco da suposição: o jogo não está passando na TV Globo, e sim na Record - pelo menos naquele boteco.
É incrível perceber em pequenos momentos como este a profundidade que atinge a nova tática da Rede Record para fazer frente ao monopólio global: se você não pode vencê-los, copie-os. Aquilo que começou como uma curiosa caça de talentos da teledramaturgia (leia-se aí não só os atores, como também técnicos e autores), que permitia imaginar uma concorrência direta, começou a se transformar em algo curiosamente patológico. Agora, a Record tenta emular a visualidade de tudo que se faz na Globo: seja no seu programa dominical ou seu telejornal diário, cujos cenários são absolutamente idênticos aos do Fantástico e do Jornal Nacional, seja nos grafismos mais banais, como os que identificam os times nos jogos de futebol ou o que identifica os filmes a cada volta dos comerciais. Não há nem um esforço em disfarçar o óbvio: é clonagem mesmo, descarada. Se por um lado a tática não deixa de ser divertida, por outro ela é um tanto deprimente: tanto pela aposta que o espectador pode ser pego "de surpresa" na sua acomodação visual, quanto por assinar embaixo de que a única forma de fazer frente à Globo é se tornando uma Globo 2. Que concorrência é essa?

Um cineclube que passa filmes no meio da floresta deserta, faz barulho?
por Eduardo Valente
A velha questão filosófica sobre o ruído que emitiria (ou não) a árvore que cai em lugar isolado poucas vezes parece mais adequada do que ao atual funcionamento como “cinemateca de luxo” do Cine Odeon BR, no Rio de Janeiro. Desde a virada do ano, a programação deste está totalmente voltada para um (na falta de descrição melhor) “perfil cineclubista”, com várias mostras e um bom número de filmes raros exibidos, a maioria com cópias em película da Cinemateca Brasileira e MAM – mas também há a eventual exibição em DVD (infelizmente nunca anunciada antes como tal). Uma vez a notícia comemorada, nem tudo são flores: a média de freqüência do cinema nas sessões menos “nobres” (ou seja, que não exibem “clássicos carimbados” ou cineastas queridinhos como Wong Kar-wai) está baixíssima. Eu mesmo já assisti a alguns filmes lá com menos de 10 pessoas na (gigantesca – mais de 600 lugares) sala, a última delas nesta quinta, 06/07, às 12h, numa esquisita recolocação em cartaz de Amélia, de Ana Carolina.
Fato é que, se o Odeon tem importante papel na recente onda de cineclubismo carioca (principalmente pelo sucesso do Cachaça Cinema Clube, da Maratona e da Sessão Cineclube – cada qual com seu público diferente, em perfil e tamanho), esta experiência recente tem deixado claro que não há público na cidade para uma aproximação radical e pouco trabalhada como esta. O público, já sabemos, comparece aos eventos específicos que trabalham de alguma maneira uma diferenciação, com maior visibilidade, o que não justifica a reserva de uma sala destas proporções com uma programação tão cinéfila em sua totalidade – afinal, nem em Paris há uma sala desta dimensão com este perfil. E aí vem o motivo da angústia: salas vazias, como o Odeon nestas ocasiões que citei, começam a dar, de novo, um sentimento de isolamento e de fracasso ao ideal cinéfilo, o que não presta serviço nenhum a ninguém (nem aos filmes, nem a formação de público, nem aos administradores do cinema). Será que não era melhor ter 2 ou 3 (ou 4...) salas pequenas fazendo um trabalho parecido, em diferentes locais da cidade – com um contato mais direto e atento ao seu público-alvo?
Como está, o Odeon BR continua um templo do cinema, só que atualmente prega para poucos fiéis – e, mais grave, não parece estar arregimentando muitos novos.

Yes, nós temos indústria?
por Eduardo Valente
Se entre as características mais marcantes de uma indústria está a fabricação de produtos em larga escala, não se pode dizer exatamente que o cinema brasileiro já tenha atingid este patamar (embora, inegavelmente, o número de filmes produzidos tenha crescido bastante nos últimos anos – se há ou não público para eles, é outra questão). No entanto, quando falamos especificamente de uma indústria audiovisual (seja ela a hollywoodiana, a das telenovelas brasileiras ou mexicanas, a das sitcom americanas ou a da Bollywood indiana), precisamos falar de modelos de produção que possam ser reproduzidos e copiados, para serem mais facilmente assimilados pelo público como produtos reconhecíveis.
Uma rápida olhada nos trailers em exibição nos cinemas atualmente faz crer que, ao menos neste quesito, o cinema brasileiro começa a parecer proto-industrial. Afinal, no espaço de tempo de duas sessões de cinema, pude ver o trailer de Zuzu Angel, de Sérgio Rezende, Trair e Coçar é só Começar, de Moacyr Góes, e O Maior Amor do Mundo, de Cacá Diegues. Ao longo do primeiro, enquanto me perguntava se Patrícia Pillar iria nos revelar estar “grávida de Luis Carlos Prestes”, Olga e o “cinema brasileiro de minisérie” não me saía da cabeça. No segundo, reconhecimento imediato do padrão Diler de TV-no-cinema (curiosa inversão do tão propalado “cinema em casa”). E, finalmente, no terceiro, o reencontro das obsessões de um “autor popular” (impossível negar o estatuto a Cacá depois dos resultados de Orfeu e Deus é Brasileiro) no terreno de sucesso das incursões do cinema brasileiro pelos espaços de conflito social urbano (Carandiru, Cidade de Deus).
Nos três casos, sem dúvida, a familiaridade com aquelas imagens e sons não foi sentida só por mim, mas por todo um público presente. Positivo para o resultado dos filmes em cartaz? Isso, só o tempo dirá – mas uma das vantagens inegáveis de uma indústria que começa a reciclar suas imagens é que, com alguma prática, o espectador pode escolher, com mais consciência, se deseja ou não conferir aquele mais do mesmo.






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