bloco de notas - janeiro 2007

"O muro é torto, mas é meu" - um resumo de Tiradentes
por Eduardo Valente
Tentando escrever um texto mais longo, percebi que não faria muito sentido a Cinética “cobrir” a Mostra de Tiradentes, uma vez que falar dos filmes ou dos debates seria falar de suas próprias escolhas: por mais que a revista não tenha sido a curadora da Mostra, e sim duas pessoas físicas, estas duas pessoas são os editores da revista – então sobra pouco espaço para distanciamento. Melhor me parece indicar os lugares que fizeram coberturas diárias mais abrangentes e críticas, como a Contracampo, o Cinequanon e o Filmes Polvo (ler nota abaixo), além do blog do Luiz Zanin Oricchio, do Estadão, onde se realizou um aquecido debate sobre filmes, debates e a crítica. Além disso, já tínhamos na revista uma longa entrevista sobre a curadoria, escrevemos vários materiais no catálogo e a imensa maioria dos longas exibidos já tinha críticas publicadas aqui na revista (críticas que mostram, aliás, maior ou menor adesão a cada um deles): Querô, O Cheiro do Ralo, Noel Rosa, Hércules 56, Cartola, Jardim Ângela, O Engenho de Zé Lins, Acidente, Proibido Proibir, Batismo de Sangue, Antônia. Não por acaso, dos cinco longas exibidos ainda sem críticas na revista, quatro foram os que estrearam na Mostra (a exceção sendo Fabricando Tom Zé), e é sobre eles que vale trocar uma palavra aqui.
Foi especialmente bonito ver as sessões de Cine Tapuia, de Rosemberg Cariry; Conceição – Autor Bom é Autor Morto, de cinco alunos de cinema da UFF; e O Quadrado de Joana, de Tiago Mata Machado (sobre O Céu Está Azul com Nuvens Vermelhas, de Dellani Lima, é mais difícil falar em sessão feliz, porque o filme sofreu graves problemas de distorção na projeção). Nos dois primeiros, a considerável adesão do público presente serviu de comprovação que o que é considerado “popular” hoje é muito mais uma construção do que uma realidade: num festival com entrada franca, sem distinção entre os filmes, o público soube reconhecer a proposta extremamente comunicativa dos dois filmes, sem que estes precisem ser formatados, seja em sua estética ou no seu sistema de produção. No caso do Quadrado de Joana, está claro que estamos de frente a um filme desafiador, cuja relação com o espectador não se pretende ser uma de fruição e sim de destrinchamento ativo. Ainda assim, ao final da projeção boa parte do público continuava firme, atento, respeitoso. E vários críticos saíram, senão maravilhados, certamente intrigados. Foram três sessões especiais, diferentes, de três filmes extremamente únicos – a melhor metáfora sobre eles nos foi dada num debate pelo ator-personagem de Joana, Zé do Poço: “o muro é torto, mas é meu”, disse ele contando um "causo" que exemplifica a relação do artista com as "normas".

No entanto, infelizmente são três filmes que se verá de novo com muitas dificuldades no futuro (Conceição não tem ainda cópia em película, o filme de Tiago tem apenas essa em condições precárias, e basta lembrar que os últimos dois filmes de Rosemberg não foram lançados comercialmente), e isso nos diz muito tanto do circuito exibidor brasileiro (vale lembrar que o vencedor do júri popular, Noel Rosa, também não tem distribuição assegurada) quanto dos festivais – que se tornam palco preferencial de avant-premières para este. A censura estética e narrativa exercida por ambos vai moldando olhares tanto quanto, maldosamente, diz apenas seguir um “estado das coisas”. No seu papel de abrir os trabalhos de 2007, acreditamos que Tiradentes fez sua parte para quebrar um pouco este isolamento.

Notícias do front mercado
por Eduardo Valente
A Grande Família - O Filme estreou fazendo 300 mil espectadores no fim de semana, o que é muito bom - resta ver bom para quem. Claro que ninguém aqui quer "torcer contra" o sucesso de uma série de artistas e técnicos nacionais, mas também não é lá muito fácil ficar eufórico com a notícia. Afinal, para além da questão estética (que deixo para analisar na crítica do filme), existe uma questão política simples: muitas vezes se diz que o cinema brasileiro não pode ser apenas um, que temos que ter um cinema comercial forte para ter um cinema forte. Eu não poderia concordar mais, mas resta perguntar qual cinema comercial forte interessa ter. Se for um cinema que é uma simples transposição da programação da TV (que já é forte o suficiente no seu domínio), eu não acho bom não. Porque este cinema comercial forte não fortalece nenhum outro cinema, ele é auto-centrado, e só gera espectadores (e lucros, porque não) para si mesmo, para a velha empresa-mãe - que desta vez, é bem verdade, pelo menos fez o filme com recursos próprios. Assim sendo, A Grande Família ser um sucesso não traz qualquer alívio para pensarmos num cinema brasileiro mais forte em 2007 e no futuro. Estou muito mais interessado em ver as performances dos dois filmes cujos (belos) trailers eu vi ontem: Não Por Acaso e Antônia. Ambos têm apoio de lançamento da Globo Filmes, mas representam verdadeiros produtos cinematográficos nacionais (mesmo com a série da TV, Antônia nasceu no cinema, como lembra o muito feliz slogan do fim do trailer: "Onde tudo começou"). Por estes sim eu torço - até porque, se nem eles conseguirem atrair o espectador brasileiro ao cinema talvez seja melhor fechar mesmo a loja e entregar a chave pro zelador da TV Globo.
Enquanto isso, para nos lembrar que tudo isso é briga de cachorro pequeno, o Filme B nos informa que o DVD já passou o cinema como principal fonte de lucro dos estúdios americanos. Assim, nossa luta, além de inglória e quixotesca, já é até anacrônica!

Duas "novas" revistas mineiras
por Eduardo Valente
Aos que desconhecem a longa história da crítica de cinema mineira, e que confundem os atuais jornalistas culturais com aqueles que realmente exercem a atividade crítica, nossa passada pela Mostra de Tiradentes nos apresentou as duas mais recentes iniciativas dos colegas em Minas Gerais. As aspas do título se referem ao fato de que uma destas revistas não é exatamente nova, mas apenas que só agora chegou às nossas mãos. Comecemos por ela, então: chama-se "Devires - Cinema e Humanidades", e como o nome pode indicar trata-se de uma revista com origem acadêmica, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. Quem nos passou a revista foi César Guimarães, um de seus cinco editores, e embora ainda não tenhamos conseguido ler toda sua edição de 2006, só uma passada de olho já faz a recomendação necessária. A revista aceita contribuições dentro de algumas normas, as quais podem ser conseguidas pelo contato que está no seu site. Em 2007, planeja duas edições, com os temas gerais principais sendo "Vestígios do real: a inscrição no tempo" e "Jean-Luc Godard". A outra dica é de um novo endereço eletrônico belorizontino, que entrou no ar logo antes de Tiradentes, de onde já fez uma cobertura bem longa e ampla: trata-se do Filmes Polvo. Da revista, elogiamos antes de tudo a empolgação e dedicação de uma equipe bastante jovem (na sua maioria ex-alunos recentes da Escola Livre de Cinema, em BH), além da clara união do grupo, sempre visto andando junto, e até escrevendo e editando juntos suas críticas. No cinema brasileiro, mais do que em muitos lugares, é mais do que apenas um clichê dizer que "a união faz a força". Além de força, a união dá consolo nos (vários) momentos duros. Toda sorte aos editores e redatores das duas novas "colegas".

Big Brother Mossad
por Eduardo Valente
Depois da vitória da baiana Mara no ano passado, os diretores do BBB decidiram acabar com a entrada de participantes "populares" por sorteio, aumentando o controle da escolha do seu casting. A justificativa apresentada foi a de que queria-se fazer do Big Brother o jogo que sempre se disse que ele era, acabando com o caráter de "justiça social" e de competição moral que ele vinha se tornando. A escalação de um elenco quase todo formado por solteiros de corpos bem definidos parecia inclusive indicar uma saudável opção por assumir um lado mais "pornochanchadesco" do que "melodramático" nessa nova edição, ainda que com uma aparência mais próxima do filme de "jovens de férias" do cinema americano dos anos 80 (com uma personagem especialmente fascinante no corpo de Fani, mulher com o discurso sexualmente mais avançado a aparecer na TV brasileira desde.... sempre). No entanto, como se sabe, o sucesso do formato (quase uma exclusividade brasileira) tem muito a ver com a moralista atração do espectador brasileiro pelo formato da telenovela, com a punição dos vilões e a vitória dos bonzinhos - de preferência os heróis improváveis (Bambam, Jean, Dhomini, Cida, etc). Por isso, no meio de todo discurso por assumir o formato de "jogo", a Globo decidiu incluir neste ano uma "novidade" no mínimo bizarra: um detector de verdade (de fabricação israelense, diz-se), usado principalmente no momento em que os candidatos vão declarar seu voto no confessionário. Pois até aqui nossa versão do Mossad eletrônico (com o "agente" Pedro Bial especialmente cínico enquanto faz uso do equipamento sem o conhecimento dos participantes) se revelou um grande fracasso: não trouxe ao programa absolutamente nada de interessante (já que suas categorias de "estresse", "confusão", e "tensão" são tão amplas e óbvias), só conseguiu tornar o momento do voto mais confuso, com um Bial bastante atarantado ("vamos modular o seu áudio...", diz ele enquanto ajusta o equipamento). Será que já é tarde demais para sugerirmos que a Globo deixe de lado suas ambições totalitárias de nos dizer quem diz ou não a verdade até no mundo dos reality shows, e simplesmente deixe os meninos e meninas se pegarem em paz - em todos os sentidos?

Uma verdade inconveniente
por Eduardo Valente
Mencionei de passagem no meu artigo sobre o circuito de cinema brasileiro uma matéria da Cahiers du Cinèma, mas vale a pena ser mais específico. Trata-se da edição de dezembro (número 618) onde se discute numa mesa-redonda um problema que aflige o mundo inteiro, mas em Paris toma dimensões ainda mais impressionantes: o excesso de números de filmes lançados nos cinemas, que levam a um verdadeiro canibalismo entre os títulos pela atenção do público. Os resultados são diferentes, mas complementares, nos dois espectros do cinema: do lado dos blockbusters, orçamentos de divulgação cada vez maiores porque o filme sabe que terá poucas semanas para recuperar seus investimentos; do lado dos filmes “de arte” a incapacidade de gerar um boca-a-boca, uma vez que os filmes são corridos das salas para dar espaço aos próximos lançamentos. No meio disso, um público aturdido que responde meio automaticamente a um mercado inflado. No Brasil, o problema não tem a dimensão da França (onde são lançados atualmente 550 filmes por ano), e tem suas especificidades (como o parque diminuto de cinemas), mas há semelhanças claras. Curioso que já em dezembro, antes de termos acesso ao dossiê e debate da Cahiers, anunciávamos aqui no nosso editorial nossa intenção de ir conversar com os diferentes agentes do mercado e tentar entender o que acontece – o que pretendemos fazer em fevereiro, depois da Mostra de Tiradentes. Não é nem um pouco por acaso que as mesmas preocupações ocupem a cabeça das nossas redações.

Botando ordem na casa
por Leonardo Mecchi
Depois de quase 15 anos onde, graças às leis de incentivo à cultura, diretores e produtores puderam captar orçamentos muitas vezes milionários para seus filmes sem qualquer tipo de medida ou exigência de resultados (comerciais ou artísticos), o governo federal começou a dar seus primeiros (e ainda tímidos) passos no sentido de corrigir algumas aberrações. O primeiro deles veio com a instituição do Prêmio Adicional de Renda, que este ano distribuiu R$ 3,3 milhões para as produtoras responsáveis pelos filmes brasileiros de maior bilheteria de 2005 (que devem usar esse recurso no desenvolvimento, produção e finalização de novas obras). Esse fomento voltado, a princípio, aos filmes de apelo mais comercial foi complementado por outro, o Programa de Incentivo à Qualidade, criado para contemplar o outro lado da moeda: os filmes que, mesmo sem grande sucesso de público, prezaram pela qualidade e contribuição artística de suas propostas. Nesta sua primeira edição, o Programa de Incentivo à Qualidade contemplou os 10 filmes mais premiados de 2003/2004 em festivais nacionais e internacionais com o valor de R$ 100 mil cada, a serem utilizados no desenvolvimento de novos projetos de longa-metragem. A essas duas iniciativas, soma-se agora uma novidade ainda pouco comentada do último edital da Petrobras. Além dos tradicionais apoios de R$ 600 mil, R$ 800 mil e R$ 1 milhão para a produção de longas-metragens, a edição deste ano do Programa Petrobras Cultural criou uma quarta faixa de investimento (de até R$ 1,5 milhão) que, diferentemente das anteriores, exige um público mínimo ou premiações em festivais para os filmes anteriores da produtora e do diretor.
Apenas para se ter uma idéia da necessidade desse maior equilíbrio entre os valores investidos em filmes brasileiros e seus resultados nas bilheterias, basta dizer que no ano passado havia 20 projetos ativos com mais de R$ 4 milhões captados para suas respectivas produções (respondendo juntos por quase 30% de todo o volume computado pela Ancine naquele ano), enquanto nesse mesmo período apenas 4 filmes obtiveram uma bilheteria superior a esse valor. Isso mostra que, embora ainda tímidas e de pouco alcance, iniciativas como essas – que buscam vincular valores mais elevados de investimento à comprovação de resultados passados, enquanto ainda permite que projetos mais autorais continuem se viabilizando – são fundamentais para que possa haver uma distribuição mais justa dos recursos públicos – e para que antigos feudos do cinema brasileiro comecem a ser desfeitos em nome de uma nova meritocracia.


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