bloco de notas - fevereiro 2007
Os
Diários de David Perlov, enfim, disponíveis em DVD por
Ilana Feldman A obra do diretor brasileiro-israelense
David Perlov era praticamente ignorada entre críticos e estudiosos no país. Após
as exibições das seis partes de seus Diários no Festival do Rio e na Mostra
da São Paulo, em 2006, o cineasta foi revelado tardiamente para um pequeno círculo,
revelação que gerou aqui na revista um artigo. Os
Diários de David Perlov são uma série documental, em primeira pessoa, finalizada
para a emissora inglesa Channel Four, nos anos 80. De 1973 a 1983, Perlov captou,
com uma câmera 16mm e sem nenhuma finalidade específica, imagens de sua família,
da vida em Israel e dos países pelos quais passou, registrando fragmentos de memória
e poéticos instantes de vida, urbanos, familiares e cotidianos. Somente editou
o material e gravou sua narração após receber a proposta para transformá-lo em
uma série de TV, o que significa que nos momentos das filmagens não havia o objetivo
de que aquele material se tornasse público. Na soma das quase seis horas de duração,
Perlov, nascido no Rio, criado em Belo Horizonte, crescido em São Paulo e radicado
em Israel, sobrepõe a essas imagens uma narração empenhada em construir uma memória
para as situações visualizadas e um pensamento destinado a tentar decifrar algo
contido nelas. Pois esse material, acrescido do
filme My Stills, chega agora ao DVD – ainda que, por enquanto, apenas na
França, pelo selo Re-Voir (com legendas em inglês, francês, espanhol,
hebraico, alemão e italiano).
Sempre
tem uma primeira vez: Cacá e Ismail frente a frente por
Eduardo Valente No meio de uma programação
que propõe a "revisão" como principal conceito norteador,
não deixa de ser curioso que um encontro absolutamente inédito tenha
marcado a mostra Revisão do Cinema Novo, no CCBB-SP. Na noite do dia 13/02,
estiveram presentes pela primeira vez na mesma mesa de debate Ismail Xavier e
Cacá Diegues (em encontro mediado por nosso editor Cléber Eduardo).
O ineditismo do encontro tem um quê de surpreendente, uma vez que Ismail
certamente é um dos principais teóricos a terem se debruçado
sobre a produção cinemanovista e Cacá tanto é um dos
poucos "sobreviventes ativos" daquela geração, como sempre
marcou sua presença na cena cinematográfica brasileira pelo discurso
constante e especialmente referente ao Cinema Novo. A conversa começou
no tom da "revisão" proposta, com Cacá propondo uma breve
retrospectiva do momento específico de que trata a mostra (os anos 60).
Neste revisão, dois pontos bastante ressaltados pela organização
e catálogo da mostra foram reforçados por ele: tanto a recepção
altamente dividida que os filmes tiveram na crítica da época, quanto
o interesse e preocupação extremos dos realizadores com a chegada
dos filmes ao público (como destacou Cacá, o movimento foi marcado
desde cedo pela criação de uma distribuidora, a DiFilm). Já
Ismail em sua fala retomou algumas das características principais do movimento
(onde destacou a expressão, retirada de Mário Neme, da "consciência
catastrófica do subdesenvolvimento" - se opondo à "consciência
amena do atraso" tipicamente brasileira), mas também questionou o
texto principal do catálogo da mostra (escrito por Ruy Gardnier, editor
da Contracampo), que considerou um pouco "conspiratório" na montagem
de um suposto "discurso oficial" sobre o Cinema Novo, a ser desmontado
pelo ato de voltar aos filmes. Ismail considerou que este ato de "desvelar"
(literalmente tirar o véu) pode tanto resultar rico, desde que propositivo,
como pode resultar vazio - e que não é uma verdade em si. Depois
disso, nas conversas propriamente ditas, deixou-se de lado um pouco a localização
no passado e se praticou muito um "cotejamento", bastante defendido
por Ismail, entre os filmes do Cinema Novo e o cinema brasileiro recente. Neste
movimento, tanto houve espaço para discutir o recente cinema pernambucano
(em especial O Baile Perfumado e Cinema, Aspirinas e Urubus)
à luz da imagem cinemanovista (principalmente Deus e o Diabo e Vidas
Secas, respectivamente), como para Cacá associar (e diferenciar) o
cinema recém-surgido nas periferias brasileiras (pincipalmente através
de iniciativas como o Nós do Morro, a CUFA e várias outras oficinas)
da geração de que ele fez parte (assemelhando, por exemplo, a questão
das inovações tecnológicas essenciais a cada tempo, mas reforçando
que não vê espaço e disposição na sociedade
atual para caracterizar este novo cinema como um "movimento", como entende
ele ter sido o Cinema Novo). Finalmente, Cacá ainda lançou duas
idéias curiosas: uma que associa hoje o cinema realista ao fenômeno
da globalização, onde ele identifica que a expressão de uma
arte "barroca" (no cinema, mas não só) está cada
vez mais marginalizada; e outra onde enxerga no Big Brother a expressão
mais radical de uma determinada dramaturgia ficcional (onde o ator que interpreta
o personagem também interpreta a si mesmo), que se relaciona com a trajetória
da telenovela global (definida por Cacá, não sem elogios aos profissionais,
como o melodrama dos anos 30 relido pelo CPC da UNE). Ele reclamou ainda da preguiçosa
falta de atenção prestada ao formato do reality show pela
crítica brasileira (citando como oposição a atenção
de Serge Daney e da Cahiers du Cinèma num momento ao fenômeno), assim
como notou a ausência da cinefilia como traço marcante na maior parte
dos cineastas atuais.
Candeias: sempre
à margem por Eduardo Valente
Me formei em cinema pela UFF no ano de 2000. Ao longo dos
cinco anos em que estive na universidade, nunca vi um filme de Ozualdo Candeias
- e se um deles sequer foi mencionado, foi muito de passagem numa panorâmica
geral sobre o "cinema marginal". Um ano depois, graças ao então
colega co-editor da Contracampo, Ruy Gardnier, que conseguiu cópias VHS
de todos os filmes do cineasta a partir de um contato pessoal com o próprio,
tive acesso ao cinema deste que reconheci, imediatamente, como um dos meus três
ou cinco cineastas brasileiros favoritos. Há no cinema de Candeias algo
de único, de pessoal, de vivo como eu poucas vezes vi ao mergulhar na obra
de um cineasta. Não é preciso ser um defensor de um cinema "diferente",
"marginal", "primitivo" (para mencionar alguns dos termos-clichê
sempre usados para falar dele) para se impressionar com Meu Nome é Tonho
(meu favorito), Aopção, A margem, A Herança,
etc. É preciso apenas que se goste de cinema, que se aprecie as possibilidades
de expressão deste meio tão rico. Para meus olhos, o cinema de Candeias
sempre foi um dos mais sofisticados que já vi, independente de sua criação
ou passado como caminhoneiro. Acho plenamente normal que ele não tenha
conseguido filmar depois do começo dos anos 90: o cinema brasileiro não
tinha lugar para ele nem entre seus "marginais" (nicho onde Bressane
- mais - e Sganzerla - menos - ainda conseguiram espaço para fazer filmes).
Acho menos normal que espaços como a universidade, menos ditados a priori
por um "mercado", tenham relegado sua obra ao esquecimento. Que bom
que, pelo menos, antes de morrer Candeias pôde ver um evento como a retrospectiva
realizada por Eugênio Puppo no CCBB paulista, em 2002. O catálogo
daquela mostra, assim como a edição
especial feita pela Contracampo ao ter acesso aos filmes em VHS garantem alguma
continuidade de memória deste cineasta, cujos filmes em si ainda são
tão difíceis de acessar (o Canal Brasil costuma exibir os mais classicamente
"boca do lixo" deles, como A Freira e a Tortura e Caçada
Sangrenta - belos trabalhos, mas longe de serem seus melhores). Se concordo
plenamente que, como nos disse Robert Altman em seu premonitório último
filme, "a morte de uma pessoa velha está longe de ser uma tragédia",
é no mínimo triste que a obra de Candeias, eterna que é,
não possa se realizar plenamente pela cortina de esquecimento que se joga
sobre ela. Sempre à margem.
"Periferia
legal" por Ilana Feldman Em
recente entrevista
ao jornal Brasil de Fato, a pesquisadora e professora da Escola de Comunicação
da UFRJ, Ivana Bentes, aponta, com a pertinência e veemência que lhe são características,
uma contradição fundamental (“esquizofrênica”, nas palavras da pesquisadora) que
tem articulado discursos midiáticos e indústria cultural. De acordo com Ivana,
enquanto o jornalismo habitualmente criminaliza o jovem negro e pobre, categorizando-o
policialmente como “infrator”, “arruaceiro”, “trabalhador ilegal”, “desordeiro”,
“drogado” e “traficante”, as produções audiovisuais recentes, no âmbito da TV
e do cinema, o “legaliza”, através de um apelo estético “realista” e da criatividade
humana que nos dizem pulsar das periferias. Trata-se, segundo Ivana, de uma “análise
dos discursos”, da mídia e dos produtos audiovisuais contemporâneos, que problematiza
a forma como a imagem das periferias é hoje capitalizada, evocada e representada
– entendendo a “periferia” como guarda-chuva sob o qual se aglutinam favelas,
rincões, e toda a sorte de excluídos, excluídos dos processos políticos, mas não
mais das práticas socioculturais de produção e consumo de um imaginário jovem
e urbano. No entanto, toda tentativa de aglutinação e unificação de objetos
tão diferentes e múltiplos não raro incorre em simplificações ou reduções (dos
próprios objetos). Dificuldade do pensamento de pensar na diferença, no particular,
sem precisar criar agrupamentos e sentidos coesos, uniformes; sem precisar totalizar
ou circunscrever tematicamente uma determinada experiência cultural. Não que a
circunscrição temático-conceitual não seja importante, ela é, antes, fundamental.
Por isso, a pesquisa sobre a “Periferia legal” tomará ainda mais fôlego quando
atravessar a “análise dos discursos” em direção à “análise das práticas”; quando
atravessar, de fato, a estética e as imagens que constituem esse objeto tão híbrido,
complexo e cada vez menos periférico, estabelecendo semelhanças, diferenças, continuidades
e rupturas, e investigando de que forma certas opções e procedimentos estéticos
(que são também éticos e políticos) constroem mundos autônomos que, muitas vezes,
quando não “inventam” a realidade ou nela se apóiam para se legitimar, querem
por força silenciá-la.
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