bloco de notas

A certeza eletrônica e a mitologia do futebol
por Cléber Eduardo
Existe uma polêmica em torno de uma suposta situação ocorrida no fatídico Brasil e Uruguai, final da Copa de 50, vencido pela Celeste em um superpovoado Maracanã. Reza a mitologia que os adversários, embora tenham feito dois gols e levado apenas um, venceram em uma cena no meio de campo, quando a partida estava interrompida. O capitão uruguaio, Obdulio Varela, teria intimidado Bigode, o marcado de Gighia, autor do gol do título. Há quem tenha visto ele dar um tapa no rosto do brasileiro, quem tenha testemunhado ele sacudir “nosso” marcador, quem tenha observado uma cusparada no inimigo canarinho. Essa controvérsia faz parte da mitologia futebolística. Isso não seria mais possível hoje. Uma câmera iria mostrar a verdade do lance e ninguém mais iria discutir nada. Sabemos antes de Toti bater o pênalti contra a Austrália, aos 48 min, no lance definidor da partida, que o lateral Grosso não foi derrubado, mas, sim, que ele se jogou em cima do corpo do australiano caído na área. Nenhuma dúvida. Com as câmeras em todos os lugares, com todo tipo de aproximação e ângulo, estamos testemunhando o fim da dúvida mitológica. Só temos agora a certeza eletrônica. Isso talvez nos esclarecesse, se houvesse câmeras onipresentes em 1950, que Varella nem freqüentou o mesmo metro quadrado de Bigode.

A Verdade e a câmera sueca
por Eduardo Valente
Apesar do acima exposto pelo colega Cléber Eduardo, a Copa de 98 nos deu um dos mais claros exemplos da falibilidade do mito da Verdade total dos replays imediatos nas transmissões esportivas. Assim como Cléber foi a 1950 para lembrar a mitologia das Copas, não custa voltarmos a ele. Era Brasil X Noruega, último jogo pela primeira fase do já classificado time brasileiro. Depois de estar ganhando de 1X0, o time acabou deixando a Noruega virar no final do jogo, permitindo assim a classificação da equipe nórdica e a eliminação de Marrocos - o que, aliás, ocasionou outro momento marcante da era televisiva da cobertura de Copas, com a equipe marroquina (que acontecia simultaneamente) terminando sua partida como classificada, e recebendo ainda em campo a notícia da inesperada derrota brasileira. Um dos gols da Noruega aconteceu num pênalti do zagueiro Júnior Baiano sobre o atacante norueguês, mas a imagem da transmissão ao vivo não mostrou o puxão de camisa que o juiz alegava ter acontecido com gestos. Seguiram-se repetidos replays de ângulos diferentes, nenhum deles captando qualquer ato ilegal por parte do defensor. Mesmo que alguns mais malandros alegassem que Júnior Baiano sempre é culpado até prova em contrário, o juiz foi crucificado em todos os programas de "análise de jogo", sendo considerado o responsável pela derrota canarinho - e, por tabela, da eliminação marroquina. Foi só dois dias depois que surgiu uma imagem que "solucionou" o mistério do pênalti inventado: um câmera da TV sueca estava entre os torcedores, fazendo uma matéria exclusiva que não era parte das imagens da transmissão da TV francesa. Por acaso, no momento do pênalti, estava com sua câmera apontada para a área brasileira, e a imagem captada revelava claramente o puxão na camisa do norueguês, muito parecido com o gesto feito pelo juiz ao marcar a penalidade máxima. Estabelecia-se, finalmente, a "Verdade". Ou seja: nem a multiplicidade de imagens que as transmissões de hoje em dia conseguem pode assegurar que "tudo" está sendo mostrado de fato. E a ilusão que ela cria de que isso acontece tem consequências ainda mais perigosas do que a extinção dos mitos do futebol: a criação de Verdades mentirosas. Para sorte de um juiz, desespero do povo marroquino (que teve que trocar o culpado humano pelos desígnios divinos) e vergonha de Júnior Baiano (que, apoiado pelas primeiras imagens, reforçou o coro dos revoltados), naquele dia havia ali uma misteriosa câmera sueca. E quantas vezes não houve?

Big Brother Seleção
por Cléber Eduardo
Não lembro das tevês a cabo transmitindo ao vivo treinos do Brasil na Copa de 2002. Antes, estas imagens eram descritas apenas em palavras pelas testemunhas jornalísticas, que assim faziam seu lobby por esse ou aquele reserva. Agora, não mais. Podemos ver quem está melhor nos treinos, quem está voando, quem está rastejando. O mais impressionante dessa simultaneidade entre o fato e sua visualização, nessa Copa, foi o momento no qual Robinho levantou e começou a massagear a coxa, dando a quem estava acompanhando o treino o exato momento de um início de um drama (seu então possível abandono da Copa). Na manhã do dia 26, em uma parada de ônibus entre o Rio e São Paulo, às 8hs, lá estava a imagem dele, Robinho, no programa de Ana Maria Braga, saindo sorrindo da clínica onde fez a ressonância magnética, na qual soube não ter sofrido estiramento do músculo. Faltou apenas a transmissão do exame. Não demorará muito para termos até isso em uma próxima Copa. Até chegar o dia em que, em uma situação como essa, na qual a pátria calça a chuteira, a concentração irá se tornar um BBB, dia e noite. Poderemos ver, assim, se algum jogador, faminto, acorda de noite e assalta a geladeira. Não nos referimos aqui a nenhum exemplo específico.

Figuração de luxo
por Eduardo Valente
Os fãs de cinema brasileiro têm tido um curioso motivo para ficar de olho em algumas das mais desinteressantes imagens que acompanham a seleção brasileira nesta Copa do Mundo. Em momentos nada reveladores jornalisticamente, como entradas e saídas de ônibus e caminhadas para campos de treino, duas presenças podem ser constantemente notadas seguindo de perto os jogadores brasileiros. Se para a maior parte dos espectadores eles passam desapercebidos como apenas mais dois câmeras entre os tantos que cobrem o evento, quem conhece sua fisionomia reconhecerá dois dos principais diretores do novo cinema brasileiro: Andrucha Waddington (de, entre outros, Eu, tu, eles e Casa de areia) e Breno Silveira (Dois filhos de Francisco), sócios na Conspiração. Acompanhados de um técnico de som, os dois estão registrando todos os momentos da delegação brasileira na Copa. Resta a nós apenas esperar que o resultado das imagens que eles conseguem captar com tamanha intimidade, em momentos como os já citados, tenham mais interesse do que estas que eles protagonizam meio sem querer.

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