bloco de notas - junho/julho 2007

Da hipocrisia necrológica (Descanse em paz, Mário Carneiro)
por Eduardo Valente
Acerca do falecimento de Mário Carneiro no último domingo, 02/09, o que dizer além do óbvio: que a afirmação presente no quase premonitório último filme de Robert Altman (“a morte de um homem mais velho não é uma tragédia”) se aplica em especial a Mário, principalmente pelo tanto de sofrimento que a doença vinha lhe impingindo recentemente – mas também pela constatação de que um homem que tem a seu redor, na hora de sua morte, as três mulheres com quem foi casado, só pode ser um homem que viveu a vida da maneira certa. Já sobre a obra de Mário, essa que continua com a gente, muito já foi e ainda será dito.
Cabe, porém, registrar a hipocrisia calhorda de um veículo de comunicação como O Globo, que dedica meia página de seu Segundo Caderno de terça ao “anúncio obituário” de Mário, com uma protocolar matéria em que se busca os “depoimentos exatos”, exatamente onde se esperaria e como que para cumprir sua obrigação mínima. Este mesmo O Globo, na hora da morte do artista, faz o favor de nos esclarecer que a obra de Mário é seminal e precisa ser revista. Aproveita a ocasião para relembrar que houve uma mostra retrospectiva desta obra no Rio de Janeiro em maio último – mas, curiosamente, não lembra que na ocasião da mostra o mesmo jornal e o mesmo caderno, er, cultural, não deu uma só linha de notícia que chamasse o seu leitor para conhecer esta tal obra que agora chama de seminal e anuncia que precisa ser vista. Não gastou uma coluna para explicar ao seu leitor porque afinal era importante ir ao CCBB e conhecer aqueles trabalhos, muitos deles vistos pela primeira vez em muito tempo, com cópias novas feitas especialmente para o evento.
Faz sentido, afinal é só o protocolo, é só a força do hábito do politicamente correto, é só a bravata tradicional de quem diz que algo “precisa ser visto” – mas somente o faz quando isso não está realmente à disposição. Obrigado, O Globo, pelos serviços prestados ao cinema.

Como afundar um filme
por Leonardo Mecchi
Alguns filmes, por suas características peculiares que não permitem uma fácil categorização, acabam se tornando uma batata-quente nas mãos das distribuidoras. Ano passado foi o caso de O Labirinto do Fauno, que a Warner não soube se vendia como um título comercial ou “de arte”, infantil ou adulto, e cuja indefinição acabou prejudicando a carreira do filme, já devidamente morto no mercado quando recebeu suas 6 indicações ao Oscar. Agora foi a vez da distribuidora Califórnia Filmes se atrapalhar com Possuídos, a impactante obra de William Friedkin.
Não apenas pela carreira pregressa de Friedkin, como pela repercussão que o filme gerou em sua passagem por Cannes (e que lhe garantiu o Prêmio da Crítica na Quinzena dos Realizadores do festival) Possuídos era uma obra um tanto aguardada pelo público cinéfilo. Apesar de se tratar de um dos mais intensos e bem realizados suspenses psicológicos dos últimos anos, a Califórnia entretanto resolveu divulgá-lo como um filme de terror, onde o próprio título em português, embora não sem relação com o filme, como anotou Cléber Eduardo, certamente foi escolhido por remeter a obras recentes do gênero como Espíritos, Premonição, Assombração, Medo, entre tantos outros. Só isso já seria suficiente para prejudicar a carreira do filme, uma vez que o público que vá a Possuídos esperando um filme de terror irá certamente se decepcionar – e mesmo se sentir incomodado – com o filme de Friedkin, gerando um boca-a-boca claramente negativo.
Mas como se não bastasse isso, a distribuidora resolveu afastar de vez o filme justamente do único público que poderia o estar aguardando, optando por lançá-lo em São Paulo, por exemplo, apenas nos multiplexes dos shoppings (e dos shoppings mais periféricos), longe do circuito cinéfilo da Avenida Paulista. Justiça seja feita: a distribuidora brasileira nada mais fez do que seguir a estratégia da Lionsgate ao lançar o título no mercado norte-americano – o que não a isenta de culpa, já que também lá tal estratégia se mostrou equivocada. Mas a impressão que fica mesmo é que, ou as distribuidoras não se preocupam muito em entender os filmes que têm nas mãos, ou o mercado de cinema virou mesmo só um “esquenta de luxo” para as locadoras – onde Possuídos chega logo, logo. E aí, azar dos anacrônicos que acham que um filme com a potência de trabalho com som e imagem seja melhor visto numa boa e velha sala de cinema.

A Pedra do Reino: a TV num cinema perto de você
por Eduardo Valente
A chegada nesta sexta (24/08) da mini-série A Pedra do Reino aos cinemas de algumas cidades do Brasil levanta algumas questões no mínimo curiosas. A primeira delas talvez seja entender a lógica que rege este “lançamento” (entre aspas por se anunciar como uma temporada limitada por duas semanas): por um lado, parece claro se tratar de uma estratégia privilegiada de conseguir mídia para seu efetivo lançamento no mercado de DVDs a acontecer ainda em setembro; por outro, não existiria aqui a tentativa de ganhar um “lastro cultural” mais forte para um projeto que sofreu com uma das mais baixas audiência da Globo em seu horário? Talvez assim se consiga salvar o projeto Quadrante, de Luiz Fernando Carvalho, do qual esta série seria apenas a primeira de quatro partes idealizadas – mas que certamente subiu no telhado dada a frieza do público ao material. Será que existe um novo público que não viu a série na TV e vai dar valor a ela agora? Seria curioso, uma vez que no movimento ao contrário até há um ganho óbvio de espectadores, mas porque pensar que houve pessoas sem acesso ao trabalho na TV que a veriam agora? Será que o status do cinema como “obra de arte” ainda vale tanto assim?
Inegavelmente este lançamento também serve para aumentar o mito sobre Luiz Fernando Carvalho, seja como uma espécie de enfant terrible da TV brasileira, seja como um gênio subutilizado do cinema brasileiro. Será que A Pedra do Reino era, afinal, um filme de cinema no lugar errado? Difícil dizer com certeza, mas o certo é que seu exílio forçado nas telas grandes vai bastante contra o discurso do próprio autor na época do lançamento, reforçando a importância da série e a crença no seu trabalho como produto de TV. Tudo isso faz parte de uma estratégia de marketing, está claro, mas também vale notar uma curiosa mudança de discurso do lançamento em TV para o cinema/DVD. Pois o discurso agora assumido é o da “polêmica”: o cartaz em exibição no Arteplex exibe em letras garrafais tanto palavras como “genial” e afins, quanto “fracasso” e “insuportável” – assinando esta palavra não vêm os nomes de seres humanos, mas de “instituições de mídia”: O Globo, Época, Folha, Estado, NoMínimo, Críticos.com.br. Cinética não está lá, mas já teve seus dois tostões sobre a série publicados aqui e aqui, também divididos em si (e talvez por isso difícil de colocar sob um só rótulo institucional).
Finalmente, a entrada da série nos cinemas nos coloca uma incômoda pergunta: o que conceitua hoje um longa-metragem lançado nos cinemas? Pode parecer uma tola questão, até desimportante, mas nem que seja por motivos de catalogação histórica, ela tem sua importância. Até pouco tempo atrás, era fácil dizer quando um filme de longa-metragem havia sido lançado nos cinemas brasileiros: quando cópias em películas de produtos com mais de 60 minutos eram exibidas em salas de cinema comercialmente. Se a chegada do formato digital de exibição já criou várias dificuldades nesse panorama, nos restava a sala de cinema comercial como forma de estabelecer algum critério. No entanto, tanto algumas salas que antigamente não seriam qualificadas como cinemas (seja por seu tamanho ou por não possuírem projetores de película ou digital de alta definição) passaram a lançar filmes quanto uma série de iniciativas começam a quebrar essas fronteiras: há pouco tempo, uma distribuidora de DVDs colocou por algumas semanas o inédito Exilados de Johnnie To sendo exibido em DVD numa sala digital em SP; agora, uma mini-série de quase quatro horas é exibida em salas de cinema com o mesmo corte com que passou na TV (inclusive separada em episódios). Será que foram casos de “longas lançados em cinema no Brasil”? Dizer que não pode ser difícil, mas ao mesmo tempo se afirmamos que sim, cada vez menos coisas diferenciam essas experiências da de exibir jogos de futebol em telões, nos restaurantes ou auditórios (ou mesmo cinemas), até cobrando ingresso. Parece uma bobagem, um detalhe, e talvez seja. Mas, que são tempos confusos, isso são.


Tá todo mundo louco?
por Eduardo Valente
Em sua coluna no Segundo Caderno d’O Globo de quarta, 08/08, Artur Xexeo nota que nesta semana estrearam 3 documentários brasileiros no mesmo dia (O Fim do Sem Fim, Person, Mestre Bimba – isso sem contar os dois episódios sobre o movimento estudantil que Silvio Tendler fez pra TV e entraram em uma sessão), totalizando quase 20 no ano. Ele constata depois que “ao mesmo tempo, a TV por assinatura nacional exibe, a cada semana, meia dúzia de documentários diferentes sobre a princesa Diana, a saga dos Kennedy ou a tragédia de Marilyn Monroe”. E conclui: “tem alguma coisa errada nessa equação”. De minha parte eu diria que, mesmo que não seja uma situação nova e sobre a qual já tratávamos aqui na Cinética há mais de ano, o que tem de errado mesmo na equação é quando nos damos conta que Artur Xexeo (logo quem) parece ser uma voz mais sensata sobre o nosso sistema de distribuição do que os “estrategistas” responsáveis pelo mesmo.
Falando em distribuição (ou falta dela), não custa referenciar o belo artigo que o cineasta Gustavo Acioli escreveu no primeiro número da revista Zé Pereira (uma revista carioca e para cariocas, mas muito mais interessante que a média das últimas que se lançou pelo país), sobre os dilemas do cineasta brasileiro. Mesmo que longe de notar algo de muito novo, Acioli escreve com verve, emoção e clareza sobre este problema que tanto nos aflige a todos – e mereceria destaque nem que fosse só pela sacada (tragi)cômica que abre o artigo, e que reproduzo aqui:
“Dizem que existem várias estratégias para o lançamento de um filme nos cinemas: lançamento em plataforma, lançamento por capital, grande lançamento, pequeno lançamento... Atualmente, a maior parte dos filmes brasileiros tem à sua disposição apenas uma estratégia: o lançamento em abismo. O cineasta se atira no abismo gritando o nome do seu filme: se alguém escutar e se interessar, pode ser que vá assistir.”

Dicas de leitura na web
por Eduardo Valente
Muita tinta (real ou virtual) se gastou nos dias seguintes ao falecimento de Bergman e Antonioni – a imensa maioria dela usada ou com tiradas “poéticas” absolutamente óbvias ou com pautas tão desrespeitosas e urubulinas a partir dos dois cadáveres frescos que pareciam exemplares do pior jornalismo marrom, desses que aprendemos a esperar da cobertura de desastres de avião, por exemplo. Vale porém linkar aqui a discussão que aconteceu na lista de emails a_film_by (que é fechada a membros e convidados, mas que tem seu fórum de discussão aberto para leitura geral – em inglês), a partir de um artigo de Jonathan Rosenbaum no New York Times. Ali sim se aproveitou o momento para pensar e fazer considerações que foram bem além do banal.
Como pouco banal também é a chance de “ouvir” Carlos Alberto Prates Corrêa, cujo primeiro filme em mais de dez anos poderá ser visto esta semana no Festival de Gramado (e poucas coisas soam tão estranhas quanto isso). Isso porque, para além de retirado do cinema há muito, Prates nunca gostou de dar entrevistas – como deixa claro justamente nessa sua primeira entrevista em muitos anos. Parabéns para Marcelo Miranda – pelo furo, antes de mais nada, mas também por ter a coragem de publicar a entrevista na íntegra, mesmo quando o irascível entrevistado o chama abertamente de “desinformado”. Ah, se a moda dessa honestidade extrema pegar firme no jornalismo nacional...

editoria@revistacinetica.com.br


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