bloco de notas - abril/maio 2007
300
leituras possíveis por Eduardo Valente
Um dos esportes mais praticados na crítica de cinema recente
sobre o cinema americano é o “encontre o 11 de setembro neste filme”. De repente,
todos os filmes realizados tornam-se uma “metáfora sobre os EUA de hoje”, o que
é por um lado uma grande bobagem generalista (uma vez que, com o devido esforço,
todo filme feito em qualquer país em qualquer tempo pode ser lido como uma metáfora
dele naquele momento), e por outro uma inversão da verdadeira lógica (o 11 de
setembro e a guerra do Iraque é que são uma representação dos EUA, tanto que chegamos
a brincar uma vez na Contracampo, quando ainda estava por lá, que devíamos fazer
uma pauta com os filmes americanos feitos antes dos anos 2000 que eram metáforas
do 11 de setembro). Isso dito, poucos filmes se prestaram tanto ao “jogo das metáforas”
no cinema recente quanto 300. A prova mais curiosa disso é que, depois
de ser acusado por vários críticos (e o governo do Irã) de ser quase uma propaganda
de guerra americana, o filme foi defendido pelo escritor Slavoj
Zizek como se muito mais adequadamente pudesse ser lido como uma crítica veemente
à política externa americana. Em boa parte isso se dá, como argumentou Alexandre
Werneck na Contracampo, pela absoluta nulidade discursiva do próprio filme em
seu “trabalho” estético (segundo ele, “daí quase tudo poder significar qualquer
coisa”), mas também não se pode negar a velha máxima de que “cada um enxerga o
que quer ver”. De minha parte, e para não ficar em cima do muro, me parece
que o filme, através do discurso obsessivo da defesa da liberdade pelos espartanos,
coloca estes mais próximos mesmo dos EUA de Bush – mas tanto na dramaturgia quanto
na estética o que me parece claro é que não é o verdadeiro exército americano
de Bush, mas sim o wet dream da exportação da liberdade americana. O filme
me parece muito mais divertido se lido como um sonho ensandecido de um George
Bush alcoolizado, onde a mistura de eugenia, crueldade, sado-masoquismo, tortura
e busca da liberdade por um lado, e as orgias anormalizadas (as cenas na corte
de Xerxes são de um moralismo assustador na conexão de libertinagem sexual e desordem
física), o homoerotismo latente e a desindividualização das vítimas do outro (quando
morre um espartano a narração diz que “perdemos poucos, mas cada um é um amigo
ou um parente”, no que implica que do outro lado morrem muitos, mas sem amigos
nem parentes) tanto revelam sobre o imaginário doentio de quem sonha quanto de
quem filma. Nesse sentido, nem acho difícil ver o filme em tintas políticas semelhantes
às das imagens que aparecem na TV em Starship Troopers, a obra-prima de
Paul Verhoeven. Só que, se este era fruto de um discurso politicamente consciente
e esteticamente forte, 300 incita que fiquemos lendo estas coisas para
espantar o tédio que é o ato de assistir o filme em si.
Folha
de SP interpreta o cinema brasileiro por Leonardo
Mecchi O cidadão vai e compra a Folha de São Paulo
de 19/04/2007. Abre no caderno Ilustrada e vê, na matéria de capa: "Filme
sobre Niemeyer estréia de graça" – artigo que trata da estratégia do diretor
Fabiano Maciel para fazer com que seu documentário sobre o centenário arquiteto
fuja da invisibilidade tão comum aos documentários brasileiros recentes: gastar
a verba que seria utilizada em divulgação para bancar sessões gratuitas do filme
na semana de estréia (o que leva a crer que talvez Maciel tenha levado a sério
demais a nota que escrevi aqui na Cinética em Nov/06 sugerindo essa estratégia).
Logo a seguir, o hipotético leitor lê um box informando que, à exceção de A
Grande Família este ano e Se Eu Fosse Você em 2006, não há filme brasileiro
que tenha feito sucesso no período, oferecendo como prova os números "decepcionantes"
de Antônia, Ó Paí, Ó, Caixa Doi$, Os 12 Trabalhos
e até I Hate São Paulo (215 espectadores, a propósito). Mais à frente,
Marcos Augusto Gonçalves decreta, em crônica saudosa dos anos 70, a morte do cinema
brasileiro: "os filmes ruins continuam sendo feitos, só que agora eles são
'bons'". "Éramos felizes e não sabíamos", diz o amigo (invisível?)
do cronista. Obviamente não falta um diagnóstico: o sonho dos cineastas tupiniquins
em alçar vôos internacionais, tal qual jogadores de futebol, é "financiado
por uma lei segundo a qual o investidor é uma entidade isenta de riscos, que em
geral nada investe, apenas faz cortesia com a renúncia fiscal. Talvez isso – o
fato de que obras já saiam pagas na produção – seja uma das razões das baixas
bilheterias nacionais". Ou seja, mistura-se tudo num samba do crioulo doido:
críticas pertinentes a uma lei de incentivo falha, suposições infundadas quanto
aos anseios de fama internacional dos cineastas brasileiros e relações nada claras
entre modos de financiamento e bilheteria (como se, utilizando-se de uma lógica
reversa, filmes bancados com dinheiro próprio fossem garantia de retorno de público). O
leitor continua a avançar na mesma edição, e descobre que a rede Cinemark encampa
batalha para limitar a venda de meia-entrada no país. Até aí nada estranho, já
que a falsificação de carteirinhas de estudante é algo sabido e notório (embora
daí a crer que os exibidores baixariam o preço de seus ingressos se tais fraudes
fossem coibidas é história pra boi dormir). Mas a declaração final de Valmir Fernandes,
presidente da Cinemark Internacional, deixa claro para quem é o verdadeiro recado:
"nos países onde atuo, não há nenhum tipo de imposição ao exibidor".
Por "imposição", leia-se qualquer tentativa de regulamentação do setor
pelo poder público. O leitor chegará ao término de sua leitura do ilustre caderno
de cultura com algumas certezas: o cinema brasileiro está morto e fadado ao fracasso
de público; os filmes recentes não chegam aos pés do que já foi produzido nos
anos 70; atualmente, só de graça pra alguém "suportar" assistir a um
filme brasileiro e, finalmente, se o governo federal sequer pensar em regular
o setor para reverter a situação, vai enfrentar chumbo grosso dos grandes guardiões
da economia liberal. Em face disso tudo, eu me pergunto: será que alguém acredita
ser coincidência a montagem subreptícea de uma “pauta” como essa num caderno cultural? O
cine é pop? por Eduardo Valente
Fomos os primeiros a louvar a iniciativa dos Pop Cine (não
sem ressalvas, como à sua localização pouco “popular” ou sua arquitetura reproduzindo
o cinema de bistrô como modelo), cuja primeira sala visitamos, como relatamos
aqui. No entanto, depois de um começo auspicioso de programação ousada (até
demais?), os caminhos recentes da Sala Maria Antônia preocupam. Primeiro, com
a pretensa colocação “em cartaz” de um filme inédito de Johnnie To – algo que
parece incrivelmente positivo a princípio. Acontece que o tal “lançamento em cinema”
(assim tratado até pelos jornais) nada mais era do que uma estratégia de lançamento
em DVD de uma distribuidora brasileira. Ou seja: em primeiro lugar, o que poderia
parecer a disponibilização de algo raro era simplesmente a exibição em tela maior
de algo acessível a todos nas locadoras; e, pior ainda, a moda pode pegar e, colocar
um DVD para rodar numa sala passar a significar “lançar um filme em cinema” –
jogando fora assim toda atenção ao espaço específico (mesmo em digital) da sala
de cinema como espaço diferenciado. Por isso é que, aqui na Cinética, Exilados,
de Johnnie To, continua sendo um filme inédito em cinema no Brasil (salvo suas
duas exibições “secretas” em 35mm no Festival do Rio – mesmo sem constar do catálogo
do mesmo). Depois, a sala parece agora ter enveredado pelo duvidoso caminho
de “despejar” em cartaz filmes brasileiros excluídos das salas comerciais. De
novo, o que parece saudável em primeiro olhar, revela-se absolutamente inócuo
– ou pode-se dizer que as menos de 500 pessoas que viram I Hate São Paulo
nas suas 3 semanas em cartaz o tornaram menos “inédito” ou “inacessível”? Sem
contar com um verdadeiro circuito de salas populares que dê a este lançamento
uma mínima circulação, trata-se de medida sem qualquer repercussão em números
ou sequer artística – já que realizada a partir de uma curadoria que parece feita
na base da “porta da esperança” (“você quer lançar seu filme em São Paulo, finalmente??”),
sem se importar com a qualidade (ou falta de) dos filmes exibidos. Sem contar
que, de novo, a qualidade da cópia digital do filme acima citado impede mesmo
que se fale de lançamento em cinema (parecia uma fita de vídeo de má qualidade,
sem mínima definição de cores ou contraste) – principal motivo pelo qual não escrevemos
crítica na seção Em Cartaz. Não por acaso, testemunhamos sessão do filme com outras
4 pessoas dentro da sala, não obstante o “preço popular”. A continuar assim, o
projeto do Pop Cine, ao invés do começo de algo diferente, se parece mais e mais
com o fim de algo já bastante conhecido.
Verdade
é tudo? por Eduardo Valente Cobrindo
o É Tudo Verdade de 2007 de maneira mais panorâmica que imersiva, percebi que,
mais do que nunca, está difícil entender o critério que separa os filmes em diferentes
mostras do festival. Por um lado, uma experiência ousada de linguagem como Bloqueio
está na mostra O Estado das Coisas (que, como diz o nome, deveria nos remeter
a questões da contemporaneidade) – quiçá para nos fazer ver o estado das coisas
em Leningrado, 1944? Por outro, na mostra Horizonte (que, a princípio, devia sinalizar
experiências de avanço da linguagem do cinema documental) temos trabalhos caretas
como o chatíssimo Stone Time Touch, que usa efeitos mais que batidos de
superposição de imagens para justificar sua lógica de “filme-diário” de auto-descoberta
– mas que, por outro lado, trata de uma percepção plenamente contemporânea da
Armênia (tanto que, aliás, sua protagonista fala em determinado estar investigando
– juro – “o estado das coisas” na Armênia). A impressão que fica é que a ousadia
de Bloqueio, porque discreta (afinal é uma questão de uso do som), perde
espaço para um filme cuja “ousadia” fica num nível completamente epitelial (o
“falso ousado”). Da mesma forma, Zeit des abschieds também está na mostra
Horizonte, mas sua força está longe de vir de alguma questão de expansão das fronteias
do documental – vem mesmo de seu personagem e da maneira como ele é exposto. Será
que havia filme mais forte e importante na Competição do que este, que passou
no Rio escondido na hora do almoço, no Oi Futuro? Eu duvido. Parece
uma bobagem, uma vontade de achar problema onde não há, mas o fato é que assim
os filmes vão se perdendo nas mostras, o que causa um efeito bizarro de indistinção
entre elas que leva à pergunta: qual a utilidade, afinal, destes recortes, se
eles pouco significam no fim das contas? Por que simplesmente não passar os filmes
sem propor estes recortes de programação, como faz por exemplo a Mostra de SP?
Não deve ser por acaso que, nessa geléia indistinta que se tornou a programação,
o suposto “filé mignon” (a competição) não tenha dado vazão a nenhum texto em
nossa cobertura – simplesmente porque seu cardápio não atraiu nenhum dos críticos
às sessões, enquanto preferiam se dedicar aos outros espaços, com filmes bem mais
apetitosos. O que me leva a um outro ponto, a meu ver tanto mais grave: o catálogo
do festival nos faz o importante serviço de informar a bitola original de produção
dos filmes – o que é muito honesto, mas por outro lado dá uma certa inconformidade
com o fato de que, após a explosão das “projeções digitais” (entre aspas mesmo
porque a maioria delas não o são, e sim simples projeções de vídeo das antigas
mesmo) alguns festivais não parecem mais se importar que filmes (ainda) sejam
feitos em determinados formatos por motivos fortes para seus realizadores. Com
isso, em salas como o Oi Futuro, Centro Cultural da Justiça Federal ou Memorial
Getúlio Vargas (para ficarmos no Rio de Janeiro), só podíamos ver os filmes das
mostras aí exibidas em projeções de vídeo – e foi assim que vimos Bloqueio,
Kobe, Uku Ukai, Phantom Limb, Vers Mathilde (para
ficar nos que eu vi), todos eles filmes realizados e finalizados em 35mm por diretores
com enorme apuro estético. Claro, transportar e projetar 35mm é bem mais caro,
mas a longa lista de apoiadores e patrocinadores dão a impressão que não seria
esta a diferença entre o vermelho e o azul no festival – e não valeria priorizar
ainda esta questão que é projetar um filme como ele foi feito? Nos acomodarmos
com projeções em vídeo que quase sempre deixam a desejar em itens como contraste,
definição de cor, brilho e luminosidade, chamando isso de “melhor ver assim do
que não ver” está se tornando um perigoso vício dos festivais brasileiros. Alguma
coisa acontece, também em Brasília por
Leonardo Mecchi No início deste ano, tudo indicava
que teríamos mais do mesmo em termos de política pública federal para o cinema,
com a aprovação de uma série de medidas que beneficiavam um certo status quo
do cinema brasileiro: a prorrogação até 2016, praticamente sem nenhuma discussão
ou modificação, das atuais leis de incentivo à produção audiovisual; e a extensão
de certos benefícios destas leis às empresas de TV aberta e por assinatura. Nas
últimas semanas, entretanto, o governo começou a aprovar, sem grande alarde, um
conjunto de pequenas medidas que, se ainda não são suficientes para sanar os problemas
estruturais que entravam o crescimento do cinema brasileiro, ao menos indicam
um movimento em direção a uma maior isonomia e responsabilidade no uso dos escassos
recursos disponíveis para o nosso cinema. Após o quase linchamento de que foi
vítima na tentativa de implantação da Ancinav (a natimorta Agência Nacional do
Cinema e Audiovisual), o Governo parece ter adotado uma nova tática para implantar
as mudanças que acredita serem necessárias para o desenvolvimento do cinema nacional:
comer pelas bordas, sem estardalhaço. A primeira dessas ações veio na implantação
do Artigo 1o-A da Lei do Audiovisual, criado para substituir o incentivo
destinado à produção de longas-metragens existente na Lei Rouanet, que se extinguiria
no final de 2006. Ao regulamentar esta nova lei, a Ancine estabeleceu um teto
de R$ 4 milhões para a captação de recursos através dos artigos 1o
e 1o-A da Lei do Audiovisual (que, juntos, representam o grosso das
chamadas leis de incentivo à cultura e foram responsáveis em 2006 pelo aporte
de aproximadamente R$ 86 milhões na produção cinematográfica brasileira). Dessa
forma, projetos de orçamento mais alto só poderão captar recursos incentivados
através destes dois mecanismos até o teto de R$ 4 milhões, tendo que buscar o
restante de seu orçamento em outras fontes. Tal regulamentação não apenas evita
que os recursos disponíveis no mercado se concentrem excessivamente em poucos
projetos de orçamentos astronômicos, como obriga que tais projetos (normalmente
com fortes intenções comerciais – ao menos no discurso) tenham que mostrar efetivamente
seu resultado nas bilheterias, já que parte de seus recursos não terá mais sido
investido a fundo perdido. Outra das regulamentações aprovadas nas últimas
semanas permite que a Ancine crie programas especiais de fomento para as áreas
de distribuição, exibição, difusão e produção independente, captando ela mesma
recursos junto a empresas e direcionando tais recursos dentro de uma política
de desenvolvimento para o setor. Se posto em prática, isso corrige uma das grandes
deficiências das leis de incentivo, que é justamente a de delegar a empresas privadas
o poder de escolha na alocação de recursos públicos, sem o compromisso com uma
visão estrutural e de longo prazo para o cinema brasileiro. Por fim, está disponível
atualmente no site da Ancine uma consulta
pública sobre a Instrução Normativa que pretende regulamentar incentivos fiscais
para o que é hoje o grande gargalo da produção brasileira: o mercado exibidor.
A idéia é incentivar a construção, reforma ou atualização de salas de cinema nas
regiões mais carentes desses equipamentos. A princípio, os incentivos só serão
concedidos a empreendimentos localizados em municípios com menos de 1 milhão de
espectadores e, quanto menor a cidade ou pior a relação habitante/sala, maior
o limite dos incentivos, podendo chegar a 80% do orçamento total do projeto para
salas a serem construídas em municípios com menos de 150 mil habitantes e mais
de 75 mil habitantes para cada sala de cinema. Temos, dessa forma, um programa
que visa a descentralização do parque exibidor brasileiro (lembrando que, hoje,
apenas 5% dos mais de 6 mil municípios brasileiros possuem salas de cinema), vinculando
o investimento público a uma priorização na exibição de filmes brasileiros, através
de um aumento de 30% na cota de tela dessas salas (a lamentar apenas que não se
trate nesta Instrução Normativa do alto custo dos ingressos praticados atualmente). O
que podemos tirar dessas três iniciativas que vieram a público nas últimas semanas
(e de outras que ainda estão sendo estudadas) é a tentativa, por parte da Ancine,
da criação de uma política pública que atue de maneira mais ampla e de longo prazo
na indústria cinematográfica brasileira, buscando fortalecê-la e torná-la menos
suscetível a crises e interesses pessoais. Há ainda um longo caminho a ser percorrido
neste sentido, mas estes primeiros passos são, no mínimo, promissores.
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