in loco - cobertura dos festivais

Blank City, de Celine Danhier (EUA, 2009)
por Juliano Gomes

Uma arte sem futuro

Trata-se de um filme sobre arte, mais especificamente sobre dois movimentos de cinema underground na Nova Iorque do final dos anos 70 e 80: o Cinema No Wave e o Cinema of Transgression. O filme de Danhier, como o título indica, é uma espécie de complemento ao documentário de Amos Vogel, Blank Generation, mais focado no universo da música, especificamente na segunda geração do punk novaiorquino. Mas a abertura de escopo acaba fazendo bastante sentido pois a idéia de arte para este grupo de pessoas se baseava justamente na lógica do não especialista. "Ninguém fazia o que sabia. Pintores tinham bandas e músicos faziam filmes", diz John Lurie, que é protagonista do filme mais célebre deste período e que mostra o ambiente apocalíptico que era a Nova Iorque dessa época, Estranhos no Paraíso.

Existe, nesses filmes tratados em Blank City, um desejo pelo básico, pelo que é cru e rápido, uma urgência que parece ser muito fértil num momento onde se valoriza tanto o que é polido e conformado (como a própria maneira desse filme de apresentar sua matéria). Em época em que cada vez mais prevalece a lógica do autor, da experiência adquirida, e onde as artes parecem cada vez mais separadas, assistir a Blank City se torna mais importante. O que se formou ali foi uma cena. Não só de artistas, mas também de traficantes, ladrões, prédios abandonados e ratazanas. Criou-se ali uma comunidade. Houve um laço que ligava todas essa pessoas e o espaço que as englobava. Toda essa produção artística encontrou um lugar onde pôde circular e fertilizar, pois ali ela era nova e original. Eles encontraram uma maneira de estar, de habitar de forma sincera e natural aquele momento. Aquilo fez sentido naquele tempo específico. Foi uma forma de responder ao presente e fazer parte dele, ao mesmo tempo, e daí vem boa parte de sua força.

Não está em jogo, aqui, uma defesa do espontâneo e tosco como forma mais genuína de arte, mas sim de uma produção que dialogue com sua comunidade e com seus pares, que crie e exerça vínculo entre um universo de pessoas. E que, principalmente, saiba morrer. Aí reside uma das maiores forças do punk, e de seus desdobramentos como No Wave e o Cinema of Transgression: sua tendência suicida. Sua ideologia do não-saber, da rapidez, busca existir exatamente antes do pensamento, da teorização, quer dar vazão ao impulso primeiro, em sua forma, antes de ser teoria, ou sistematização. Assim, já prevê sua própria morte no momento em que, a partir de seu sucesso, e de sua apropriação pelos meios institucionais da arte, simbolizados no filme pela figura de Jean Michel Basquiat, essa energia vital se esvai no minuto seguinte. Mas, na verdade, Basquiat não é o grande vilão da história. Por definição, essa cena não podia durar, ela sempre previu sua própria morte (não por acaso o "filme de suicídio"é quase um subgênero nesses movimentos).

Blank City encena esse luta entre duas visões de arte na medida em que nos mostra uma cena pulsante e suicida, viva, mas se estrutura a partir de uma espécie de sobriedade que busca exatamente ser relevante, poder durar, pela consistência da informação. Esta última é, por definição, o que já nasce morto, o que não sofre transformação, o que é imóvel. Assim, Celine Danhier traz um debate que parece essencial hoje, onde se deseja cada vez mais prolongar a vida indefinidamente: é preciso saber morrer, assumir a morte como o processo natural na curva da vida, seja de uma obra, de uma cena ou de um artista. O que esses artistas mostram é a importância de se abandonar o desejo de futuro, de permanência, de projeto, em nome de um compromisso vital com seu presente, com seu entorno, e isso só pode ocorrer se a finitude não for um problema.

Outubro de 2010

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