in loco - cobertura dos festivais
Black Dynamite (idem), de Scott Sanders (EUA, 2008) por
Fernando Veríssimo
Badass
De
todas as contribuições dos negros à cultura norte-americana no século XX, talvez
a mais controvertida tenha sido a herança duvidosa deixada pelos filmes baratos
e caça-níqueis realizados ao longo dos anos 70, que formaram um gênero conhecido
como blaxploitation. Tentativas canhestras de capitalizar sobre os movimentos
de afirmação social do período para alguns, ficções libertárias com os dedos no
pulso das comunidades negras urbanas para outros, essas produções eram caracterizadas
por um elenco principal totalmente negro e por tramas que visavam atingir a realidade
dos negros norte-americanos, explorando temas como crime, corrupção, tráfico de
drogas, prostituição e a vida nos guetos. Na prática, os filmes partiam de uma
demanda formada a partir de uma rede de exibição secundária, formada por antigos
cinemas “de bairro”, cujos bairros, no caso, passaram a abrigar um número cada
vez maior de afrodescendentes, em geral pertencentes a extratos sociais menos
favorecidos. Essas salas decadentes formavam um circuito interessante para produtores
independentes que, com mais ou menos consciência, enxergaram nele uma oportunidade
para multiplicar os lucros. Muitas produções disputam a paternidade
do gênero, mas uma história em particular, que antecede os lançamentos de They
Call Me MISTER Tibbs, Shaft e Sweet Sweetback’s Baadasssss Song
em pelo menos dois anos, dá a dimensão daquele território ainda subexplorado e
potencialmente lucrativo. Em abril de 1968, dois cineastas saíam em viagem de
carro de Pittsburgh, cidade industrial da Pensilvânia, em direção a Nova York.
No banco de trás, eles levavam uma cópia de um filme de horror independente de
baixo orçamento, cujo protagonista e “herói” era negro, que eles pretendiam exibir
a possíveis distribuidores. No caminho, o rádio informou o assassinato de Martin
Luther King. De repente, o filme radical que os dois haviam realizado ganhava
uma nova dimensão – ainda mais subversiva. Uma dimensão que seria explorada pelo
futuro distribuidor, mas que não seria mais que uma nota de rodapé na história
de A Noite dos Mortos Vivos. Fato é que, de acordo com vários relatos,
nos cinemas localizados em bairros negros a reação ao final provocador era absolutamente
diferente daquelas que tornaram famosas as – primeiras! – sessões de meia-noite. *** Nada
mais curioso, portanto, que assistir a uma sessão de Black Dynamite numa
seção do Festival do Rio que ostenta o título de Midnight Movies, e que
mescla filmes com temáticas tão díspares quanto a rotina de uma toda-poderosa
editora de uma famosa revista de moda e as tentativas impetradas por membros de
uma ONG de ridicularizar executivos do circo das finanças. E, bem, verdade seja
dita, na sessão em que estive presente não havia muitos negros na platéia. Mérito
do Black Dynamite, portanto, que ele não dependa de sua base referencial
para divertir. Essa produção independente comprada por grossa quantia pela major
Sony no último Sundance Film Festival tem valores de sobra para justificar
a venda e tentar a sorte em mercados nos quais “filmes de negão” atuais – como
os de Tyler Perry e Ice Cube – não tem a menor chance. Isso porque, muito embora
Black Dynamite seja uma paródia/homenagem das produções blaxploitation
(um gênero não exatamente popular nos dias de hoje, além de pouco conhecido no
Brasil de hoje ou de antão), suas qualidades cômicas ultrapassam, e muito, sua
proposta temática e estética. Não será de espantar se Black Dynamite venha
a se tornar um pequeno fenômeno nas bilheterias dos Estados Unidos – as mesmas
que consagraram o Clint Eastwood de Gran Torino –, uma vez que ali as referências
estão bem plantadas e são facilmente reconhecidas. Afinal, Shaft foi um
filme alçado ao mainstream, valendo um Oscar a Isaac Hayes (nosso amado
“Chef”) em 1972. Além disso, palavrões e gírias dos anos 70 são um commodity
e dos bons para a comédia – como nós brasileiros descobrimos vendo nossas
pornochanchadas. Mas
uma platéia carioca, branca e de classe média, achando graça em Black Dynamite?
Esse público viu Cidade de Deus. Vive no Rio. E curtiu. Curtiu porque o
filme é universal o bastante nos preconceitos e nas suas piadas em torno deles
e porque ele tem um astro de primeira no papel-título, um tal Michael Jai White.
Claro que parte da graça está nos figurinos assinados por Ruth Carter – que já
transitou pela América negra dos anos 60 e 70 – e nos cenários; na trilha sonora
de Adrian Younge – também montador (o que explica o ritmo perfeito do filme),
talentoso músico (gravou todos os instrumentos) e especialista em funk e soul
music que emulou Hayes, Mayfield e Womack numa música que serve às vezes de
narração e comentário à ação; ou no visual que reproduz as cores e a luz dos blaxploitation
originais (com o qual certamente colaborou a projeção escura do Espaço de Cinema
1). Mas o filme se sustenta mesmo no carisma do protagonista
e no andamento absurdista da trama. Black Dynamite, o cara, tenta vingar
o assassinato de seu irmão, honrando a mãe. Ele desbaratina uma rede internacional
de tráfico de drogas dominada por um gênio do mal, ganhando a mocinha “pantera
negra” e descendo o cacete nos que se metem em seu caminho. Seus parceiros na
campanha são os caras da comunidade, todos dispostos a combater The Man,
o sistema. Mas seu principal aliado é mesmo o kung fu. As piadas tomam proporções
cada vez maiores à medida que o filme avança, de modo que, como em todas as boas
comédias, ele vai ficando mais ambicioso e mais engraçado. Tudo gira ao redor
de um grande plano para dominar o mundo. A tentação de revelar o plano secreto
aqui é grande – mas como o filme ainda tem chance de estrear no Brasil (via Europa
Filmes), isso estragaria para você (1) uma das melhores sequências do filme, na
qual Black Dynamite e seus parceiros decifram o “Código Kansas” e acidentalmente
inventam a receita do popular Chicken and Waffles americano; e (2) a melhor piada
da melhor sequência de piadas do filme. Que tem a ver com Richard Nixon e nunchakus. Michael
Jai White é Gene Kelly e Fred Williamson misturados, com o talento dos melhores
comediantes americanos. Depois de várias partidas falsas na carreira (fazendo
Tyson para a TV e protagonizando o mico Spawn) e uma passagem por
um dos melhores filmes B dos últimos anos – O Lutador (Undisputed 2),
no qual deu uma mãozinha na coreografia –, esse exímio lutador de artes marciais
achou o papel perfeito em Black Dynamite, personagem que ajudou a construir, junto
com seu universo peculiar de órfãos viciados em heroína, lindas mulheres, ternos
arrasadores e toda sorte de figuraças do gueto. Especialista em caratê (como o
próprio Jim “dragão negro” Kelly) e faixa preta em sete diferentes artes marciais,
White tem de sobra o tipo e o carisma de um autêntico herói de ação e o tempo
de comédia de um craque. Os parceiros de White na empreitada
são Scott Sanders, diretor de um único filme anteriormente, realizado há mais
de dez anos (o ótimo Jogo Entre Ladrões, com Alec Baldwyn); e Byron Minns,
ator que faz o Bullhorn e que também assina o roteiro junto com White e Sanders.
Também os irmãos Yuan – Ron e Roger, um deles como o sinistro Dr. Wu. O prospecto
é positivo, com contrato fechado para uma versão animada para o Cartoon Network,
e a possibilidade de uma continuação. Se fizer muito barulho lá nos EUA, pode
ser que a distribuidora se anime por aqui. Em DVD (e Blu-ray, torcemos), há de
vender bem e se tornar um pequeno clássico. Outubro
de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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