in loco - cobertura dos festivais
Biblioteca Pascal (Bibliotheque
Pascal), de Hadju Szalbocs (Hungria/Romênia/Inglaterra/Alemanha,
2010)
por Eduardo Valente
Cinema
novo
Se não tivesse mais nenhuma qualidade (e tem várias,
como veremos a seguir), Biblioteca Pascal seria já um filme
muito importante por parecer permitir ao cinema romeno sair do
sufocante limite temático-estilístico em que suas melhores obras
o cercaram nos últimos anos desta sua atual “primavera”: de um
lado, o (des)governo Ceausescu e suas inúmeras repercussões práticas
e pessoais na vida do país; de outro, o abraço completo ao realismo-naturalista
mais radical (e, sem dúvida, bastante impressionante em vários
dos seus resultados). Só que, de maneira muito adequada a um filme
que derruba várias teses com enorme simplicidade, esta mesmo também
não se sustenta, pelo simples fato de que, embora seus personagens
e espaço diegético principal sejam da Romênia, o diretor do filme
é em verdade húngaro - como a maior parte desta co-produção internacional.
Trata-se apenas de mais uma “ilusão de ótica”, entre as várias
que articula muito bem Biblioteca Pascal.
O
filme começa como um bom “filme romeno”: uma mulher tem uma longa
conversa com um assistente social (interpretado por Ion Sapdaru,
que já nos é familiar como um dos protagonistas de A Leste
de Bucareste – além de coadjuvante presente numa serie de
outros filmes romenos que circularam nestes anos). Tanto a sua
encenação, como a maestria do jogo dos atores (principalmente
seu tempo de cena – o tal timing) nos coloca confortavelmente
no modelo do que entendemos hoje como o “cinema romeno”. No entanto,
assim que Mona, a personagem principal, passa a narrar sua história
(“o que a levou até ali”, segundo as palavras do assistente),
o filme passa a fazer aquilo que se repetirá ao longo de toda
sua duração: nos desestabilizar seguida e completamente nas certezas
sobre o que, afinal, estamos assistindo. Esta, de fato é a maior
qualidade de Biblioteca Pascal: menos sua (considerável)
beleza e maestria estética, e muito mais sua habilidade de nos
manter constantemente na beira da cadeira, com a sensação de que
tudo pode acontecer a qualquer momento, seja dentro de um plano
(uma cabeça que sai de dentro da areia da praia, por exemplo),
seja no encadeamento entre eles (o filme propõe algumas das mais
criativas elipses do cinema recente).
No
entanto, o que realmente desestabiliza em Biblioteca Pascal é menos essa questão de
forma, e mais o fato de que ele usa toda essa verdadeira combustão
energética de que é feito para tratar de fato de dois dos problemas
mais graves da Europa atual (particularmente a Europa do Leste):
a exploração sexual das mulheres e a imigração interna entre os
países mais pobres e os mais ricos. Nesse ponto é que o jogo proposto
por Hajdu Szalbocs se revela mais sagaz, inteligente mesmo: ele
parece nos dizer, afinal, que usar do realismo para fazer denúncia
via ficção no cinema de algo tão dantesco como o
encarceramento e o abuso sexual de pessoas só pode resultar em
humanismo vazio (já que ninguém, afinal, pode ser de fato “a favor”
deste abuso, pelo menos não discursivamente). E que insistir
nesse caminho parece mais querer libertar os próprios realizadores
de suas culpas (“ufa, fiz algo pela humanidade”) do que servir
a pretensos fins práticos (ou alguém ainda se surpreende ou comove
com alguma “revelação” sobre o tema?).
O que Szalbocs consegue articular em Biblioteca Pascal,
ao emprestar ao filme esta abertura do “mundo real” para o imaginário,
quebrando assim as categorias mais simplistas e confortáveis (como
vítimas e perpetradores), é emprestar complexidade, vida e, finalmente,
dar ao mundo um olhar que ele só pode adquirir através da arte
– e do cinema (e, nesse sentido, vale destacar especialmente o
fenomenal plano final do filme, que em si mesmo condensa muito
mais peso sobre o mundo moderno do que qualquer “filme-denúncia”).
Por isso tudo, Biblioteca Pascal consegue algo muito difícil:
não se torna um filme melhor porque trata de “tema nobre e urgente”,
mas sim dá ao tema nobre e urgente força real por ser parte de
um filme - em toda a melhor acepção do termo. Não é pouca coisa.
Setembro de 2010
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