in loco - cobertura dos festivais

Fica Comigo (Be With Me),
de Eric Khoo (Cingapura, 2005)
por Eduardo Valente

Comunicação a qualquer custo

Fica Comigo tem um crédito essencial no seu começo: “inspirado na vida de Theresa Chan”. Trata-se de um docudrama, portanto? Nem por um segundo. O que Eric Khoo faz é uma coisa rara (senão inédita). Ele pega a história da vida de uma pessoa real, e a partir dela imagina situações ficcionais que se relacionem com o que considera ser o grande tema desta vida: conseguir se comunicar, estabelecer relações, contra todas as probabilidades – uma vez que Chan é cega E surda (por favor, sem ir muito fundo na questão, tirem um momento e tentem imaginar o “muro” – para usar expressão do filme – que se ergue entre uma pessoa com estas duas características ao mesmo tempo e o resto do mundo). Só que não apenas Khoo realiza esta operação de urdir ficções a partir de uma pessoa: ele ainda vai além e incorpora a própria pessoa nesta ficção, de uma maneira ao mesmo tempo tão sutil e inesperada que simplesmente não há limites entre o que é encenado com atores e o que são eventos da vida desta pessoa. Como se fosse pouco, Khoo inova ainda ao incorporar as legendas como linguagem no filme, criando uma dupla leitura entre imagem visual e imagem escrita que combinam ainda mais os registros a cada plano: o documental reposicionando e alterando o ficcional – e vice-versa.

Apenas por realizar este movimento, o filme de Eric Khoo mereceria muito mais atenção que boa parte das realizações contemporâneas que patinam nas mesmas velhas fórmulas. No entanto, existe mais para se deleitar em Fica Comigo. Existe, para começar, a maneira desbragadamente simbiótica com que Khoo se conecta a seus personagens. Numa das três histórias que interlaça com a vida de Theresa Chan, o que vemos é um autêntico filme adolescente de emoções desenfreadas, onde o novo “arsenal” tecnológico de comunicação (SMS, email, messenger) surge retratado com uma propriedade ainda não vista no cinema mundial (tanto assim que na cópia exibida em SP vimos o curioso fenômeno das legendas em inglês para as mensagens digitadas em inglês – só que na linguagem cifrada típica da digitação adolescente).

Fica a pergunta: adolescentes com adesivos Hello Kitty e toques de celular com latido de cachorro são ridículas? Talvez para quem assista, mas para Khoo não há possibilidades de impor este julgamento moral sobre seus personagens: ele acredita na dor absoluta da solidão de cada um, tanto quanto no êxtase de cada contato – e por isso se irmana a seus personagens. Se para uma adolescente, o fim do seu primeiro caso de amor é motivo para desespero, para Khoo não será diferente. Assim como, se para outro personagem o tratamento que recebe do pai e do irmão é estúpido, assim ele será retratado. Em ambas as histórias, não há espaço para “sutilezas de construção”, porque não é esse o expediente do filme. Ambas são construídas com o mínimo de elementos para que percebamos o básico: porque, afinal, aquelas pessoas se sentem sozinhas, desconectadas do mundo. Porque elas procuram tanto uma maneira de chegar ao outro que os ignora.

Em última instância é disso que trata o filme de Khoo, a partir de Theresa Chan: estar fechado em si mesmo é a maior prisão que o ser humano pode enfrentar. Daí o título tão absurdamente claro e tocante na sua forma direta: “be with me” (a versão literal em português sofre do fato de ter uma leitura adolescente que não se conecta com a do filme – pelo menos não totalmente). Cada personagem do filme luta por este contato, por esta completude que é sentir a presença de um outro ao seu lado. Assim, quando o filme conecta de vez as três histórias ficcionais (e a vida de Chan), não se trata de uma surpresa ou de um golpe de roteiro, porque era disso mesmo que o filme tratava o tempo inteiro: primeiro, da possibilidade do contato; depois, da possibilidade da tragédia ser o estopim de uma outra felicidade que seria impossível sem esta. Assim, uma tentativa de suicídio que se torna um assassinato (o que poderia ser considerado o equivalente de uma surdez completada pela cegueira), pode acabar se revelando a maneira única de revelar a existência de uma pessoa a outra (nem que seja pelo jornal), dando a ele a visibilidade que nunca teve em vida; e para outra pessoa pode ser uma forma de recomeçar, ao chamar a atenção para seu drama mudo. Não satisfeito com esta resolução, Khoo vai mais longe ainda, e conecta de vez ficção e realidade, Theresa Chan e um dos personagens que inspirou, numa cena final das mais belas do cinema recente.

Temos aqui o anti-Iñarritu por excelência: o ser humano sempre pode suceder nos seus intentos, contra todas as probabilidades. Como notou bem Cássio Starling na Folha de S. Paulo, a incomunicabilidade é um tema tão presente nos cinema pós-anos 60, que chega a ser hoje um clichê no cinema moderno (basta ver Climates na Mostra para saber do que estamos falando). Pois é nesse contexto que chega Eric Khoo e nos apresenta um filme que é verdadeira profissão de fé na possibilidade da comunicação – profissão de fé tão profunda que no filme a comunicação se dá mesmo que seja através da morte.



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