in loco - cobertura dos festivais
Bestiário (Bestiaire), de Denis Côté (Canadá/França, 2012)
por Fábio Andrade

Imagem e movimento

Há um lugar-comum crítico que exagera questões aparentes em certos filmes, resultando em afirmações como "este é um filme sobre a luz", ou variantes como "um tratado sobre o uso da zoom" e "um inventário de distâncias focais". Tais afirmações, frequentemente exageradas, servem legitimamente a fins retóricos de uma dimensão política. Justamente por isso, merecem a consideração e o interesse, mas só de quem lê sabendo que, no fundo, Morte em Veneza, por exemplo, não é exatamente um tratado sobre o uso da zoom.

Este grãozinho de desconfiança serve apenas para que possamos chegar a um filme como este Bestiário e afirmar, com todas as letras de convicção: é um filme sobre enquadramento. De fato, há um sentido bastante específico na escolha dos personagens por Denis Côté - a saber, animais que são observados em diversas situações diferentes. Os bichos não estão ali por acaso, mas a isso voltaremos mais tarde. O que importa é que, usando seres nem sempre "dirigíveis" - e fazendo valer a boa máxima deleuziana de que não há maneira mais ostensiva de chamar atenção para a câmera do que deixando-a absolutamente fixa -, Bestiário investiga o quadro cinematográfico como uma ferramenta de controle.

Todo o trabalho de enquadramento aqui chama atenção para sua insuficiência. Os animais, quando não parte de uma composição que tem como fim o próprio rigor plástico, olham sempre para fora, reagindo a ameaças que o rigor esconde. São violentados pelas bordas do cinemascope. Não há diferença entre o antílope que só possui um chifre de fato e o boi que aparece logo em seguida, com um dos chifres amputados pelo limite do quadro, como as pernas das zebras que correm sem corpo de um inimigo invisível. O tigre bate com a pata contra a porta da jaula mas, pela maneira que Côté enquadra, não é exatamente da jaula que ele tenta escapar; quer é fugir para o extracampo, deixar de ser imagem. A imagem é uma forma de controle, de congelar o que é vivo em um ponto específico do quadro. Toda mobilidade é uma ameaça à composição, por isso é necessário apertar a hiena é apertada entre grades, para um shot (um plano ou uma injeção... tanto faz) - e bem no centro do quadro.

É fato conhecido que o cinema surge como invenção científica. Bicho da mesma ninhada do trem a vapor e do avião, a câmera cinematográfica é um ápice de uma variada linhagem de traquitanas dedicadas a decompor e estudar os movimentos do mundo. São muitas, por exemplo, as pranchas de Marey recortando o vôo de passáros, as passadas de um cavalo ou os movimentos de um atleta. A partir dessa decomposição, o movimento poderia ser estudado e, posteriormente, recriado, reproduzido em máquinas, aviões - e ouvimos o barulho de várias aeronaves, cortando os céus de Bestiário -, carros e outros meios de transporte. O filme, inclusive, termina justamente com os carros e os bichos, juntos em um falso safari. O compromisso original do cinema é com o movimento, e justamente por isso há poucas coisas tão perturbadoras e perversas a serem vistas em uma sala de projeção quanto o estático absoluto: a maldição suicida de Fim dos Tempos, de Shyamalan, por exemplo, tem como primeiro sintoma a paralisia absoluta, esse gesto que troca Lumière por um retrato vivo na parede.

É importante notar que Bestiário chega com o selo de Le Fresnoy, uma das mais reputadas escolas de arte contemporânea do mundo. Importante, pois Denis Côté parece justamente falar desse limbo onde cinema e museu se encontram. É terreno pantonoso e o filme não saíra de lá sem perder os sapatos. Há aqui uma primazia do conceito e da repetição sistemática que parcialmente enfraquece a linearidade em nome de uma sensação de instalação. Ainda assim - sabendo que há planos que redundam e que poderiam ser vistos em outra ordem sem prejuízo do "conceito", ou seja, que estão mais para a tendência circular das instalações do que para as projeções em cinema, com hora marcada para começar e acabar - a linearidade do cinema impõe transformações importantes. Pois, justamente, Bestiário é mais um filme de zoológico do que um filme de ateliê de taxidermia (embora ambos sejam locações do filme): sua investigação não é tão somente em torno do enquadramento, mas do enquadramento agindo sobre imagens em movimento.

Não à toa, o filme de Denis Côté começa em um ateliê de desenho. A princípio, a câmera mostra apenas o rosto dos estudantes, que desenham algo no contracampo, contra o corpo da imagem da câmera. Plano a plano, começam a surgir pedaços dos esboços, para depois ser revelado o modelo: uma rena empalhada no meio da sala. Mais tarde, Bestiário trocará os animais em movimento pelo processo de evisceramento e reconstituição de um ateliê de taxidermia. Os taxidermistas trabalham dedicadamente, com suas navalhas, arames e moldes de isopor, e o filme capta cada detalhe desse trabalho, cada pele cortada e remendada, até que não sobre rastro do trabalho manual. São eles, também, parte desse bestiário, ali a tentar fixar, impor uma forma rigorosa e estática ao que já está morto.

Os bichos, porém, ficam ali, parados, com seus olhos de vidro, congelados em instante pregnante, em pose que represente sua "essência". As cabeças dos alces são penduradas, isoladas do corpo como os rostos das llamas e dos avestruzes que aparecem no filme em primeiro plano. Mas, em toda a sequência, a câmera se concentrará no trabalho em um animal específico, acompanhando todos os estágios até chegar à mimese final. É um pássaro. Com suas pernas de arame retorcido e as penas pintadas e penteadas, a ave parece de verdade. Mas, ironia das ironias, na tentativa dedicada de restituir uma essência, toda a palha do mundo será incapaz de eternizar um pássaro em pleno vôo.

Outubro de 2012

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