in loco Dia
5: Os vôos de Sparrow por Kleber Mendonça
Filho Sparrow, de Johnnie To (Hong Kong, 2008) – Competição
oficial O
novo filme de Johnny To que está na competição de Berlim parece integrar algum
manifesto desconhecido, ou não divulgado, que visa encher telas retangulares com
um tipo de super-cinema composto por ultra planos de uma mise-en-scéne
que beira o experimental. São 87 minutos com a aura de um musical (mas não é),
com referências que vêm naturalmente à cabeça via legados do Bresson de Pickpocket,
Hitchcock e De Palma dos múltiplos ângulos orquestrados. O toque extra especial
é o fato de esse filme, na forma que ele tem, ao meu ver não teria a menor chance
de sair de lugar algum, exceto Hong Kong via cinema de Mr. To. À
saída da sessão, eu ouvi murmúrios variados, o melhor deles o clássico WWTAA (“what
was that all about?”), versão mais polida para WDF (“what da fuck?”). WWTAA é
usado toda vez que alguns espectadores sentem-se atropelados por um filme que
não se encaixa naturalmente em qualquer que sejam as definições normais, ou mesmo
as mais incomuns. Não só pela experiência de um cinema poucas vezes visto nesses
termos, a liberdade de movimentos e fluência das imagens me fazem crer que Sparrow
é a melhor coisa vista até agora por aqui. Ambientado
na Hong Kong de agora, To apresenta uma pequena quadrilha de batedores de carteira
urbanos. O símbolo-chave é um pardal que abre o filme, e que To explicou na coletiva
de imprensa ser palavra também tida na gíria local como usada para ladrões de
mão leve, os tais pickpockets. Um plano introdutório estabelece a leveza de câmera
do filme, e sua mais do que aparente herança do Pickpocket de Robert Bresson.
Numa seqüência sem cortes, via grua que sobe e desce organicamente, vemos um balé
de roubos numa calçada movimentada. A seqüência nos lembra o fascínio e o porquê
de planos-seqüência serem tão cobiçados por cineastas, infelizmente muitos deles
sem a fleuma para transformá-los em material orgânico. To não é um deles, pois
suas imagens fluem como água cristalina. Aos poucos, tem-se
a sensação de que Sparrow, na verdade, é nada mais do que um filme de samurai,
um mini-wuxia das carteiras batidas em movimentações deliciosamente impossíveis,
mas que preenchem a tela como pouca coisa. Entra também em cena uma femme fatale
que irá ensinar algumas coisas a essa quadrilha de mãos leves, e o filme assume
um aspecto de divertimento puramente visual que, pelo menos para mim, parece engolir
totalmente qualquer noção de enredo, gerando o já citado WWTAA. O
prazer de To pelo filmar o leva a uma seqüência especialmente longa filmada sob
forte chuva (noturna), com a palavra-chave "guarda-chuvas", onde a sucessão
de planos em câmera lenta e os múltiplos ângulos sob uma trilha provavelmente
baixada de Marte transformam o que vemos num prazer cinéfilo com evocações estimulantes
de Hitchcock (Correspondente Estrangeiro), De Palma (Síndrome de Caim,
Carrie) e Jacques Demy (Guarda-Chuvas do Amor). Esse prazer, embora
inicialmente sensorial via fluência da imagem de cinema, me fez pensar outra vez
no prazer intelectual da cinefilia, e isso fechou bem com uma pergunta feita por
jornalista de Hong Kong ao próprio To, na coletiva. O colega quis saber o porquê
de filme tão "entertainment e comercial ter sido submetido a um festival
como Berlim, onde preza-se um cinema mais autoral". A resposta de To me pareceu
perfeita: "eu nunca sei se um filme é comercial ou autoral, eu simplesmente
faço o filme e entendo o que ele é depois". Fevereiro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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