in loco Dia
4: Notícias da competição por
Kleber Mendonça Filho O final de semana
começou assustador, nível baixo nos primeiros dois dias. Do sábado para o domingo
ficou claro que relacionamentos humanos marcam os filmes da mostra competitiva
(e o nível melhorou). Surgiram abordagens de temas como pedofilia, adultério,
amadurecimentos pessoais e alcoolismo. Curiosamente, foram filmes de cinematografias
ditas pequenas que preferiram ver o lado mais leve das coisas, e mesmo do ponto
de vista da imagem de cinema, com contribuições dignas de nota do México (Lake
Tahoe) e Irã (Song of Sparrows). O domingo revelou-se particularmente
produtivo, incluindo um possível titulo de "bom gosto" que poderá ser o primeiro
destaque antecipado para a temporada Oscar 2009 na forma de Elegy, filme
com Ben Kingsley e Penélope Cruz. Black Ice (Musta
Jäa), de Petri Kotwica (Finlândia/Alemanha, 2007) – Competição
oficial Para
quem reclama de cinema televisivo no Brasil, vale saber que na Finlândia ele também
existe, embora acrescente aí uma certa sensibilidade nórdica para com as agruras
do casamento, impossível de não ser associada a Ingmar Bergman. Black Ice
(Gelo Negro), de Petri Kotwica, é um drama inicialmente assistível, mas que torna-se
fatalmente enrolado na própria rede que ele espera espertamente jogar no espectador.
É triste. A sinopse já me faz enxergar Kotwica assinando contrato com algum produtor
americano para remake com Angelina Jolie ou Julia Roberts, em algum almoço
na Potsdamer Platz. Mulher madura traída, quietinha, decide aproximar-se da amante
do marido arquiteto, tornando-se a melhor amiga da jovem. O diretor parece ter
tido medo de nunca mais filmar, pois seu roteiro envolve incidentes para mais
três filmes, ou uma minisérie, e vai de morte por congelamento a exames ginecológicos
não requisitados por pacientes desacordadas. Nunca chato em nenhum momento (os
atores Outi Mäenpää, Ria Kataja, Martti Suosalo são, de fato, bons), apenas engraçado
involuntariamente rumo à segunda metade, via ausência de noção do quão absurdo
ele pode ser. Foi sucesso na Finlândia, ironicamente terra de um dos maiores autores
da atualidade no setor economia, Aki Kaurismaki. *** Gardens
of the Night, de Damian Harris (EUA/Reino Unido, 2007) – Competição oficial Pedofilia
não é um tema fácil de filmar, nem de assistir. E se a mão é pesada, o espectador
sente duas dores: a da feiúra temática e a do constrangimento via abordagem. Gardens
of the Night, filme amerindie telegrafado por Damian Harris, é o campeão
de desistências até agora, aquele momento em que as pessoas começam a ir embora.
Diferente de Cannes, não há o FLAP dos assentos, apenas a sensação de que vultos
deslocam-se no escuro rumo à saída. É sobre uma garotinha loira de sete anos,
a imagem da fragilidade humana, raptada (numa cena provavelmente pesquisada sobre
técnicas de pedófilos com o objetivo de enganar crianças pequenas) por um pedófilo
"bom" e outro "mau". O "bom" a estupra, mas antes manda um texto poético sobre
a transformação de uma lagarta em borboleta, e que isso "significa sentir um pouquinho
de dor". O "mau" sempre grita com as crianças, mandando elas beberem "THE FUCKING
DRINK" ou "SHUT THE FUCK UP". Ela vai parar nessa casa onde também mora outra
criança roubada, um garotinho negro. Os dois são oferecidos sexualmente a clientes
de todo os EUA, alguns (revelação curiosa na sua sordidez) capazes de pegar um
avião para satisfazer esse tipo de sexo. Aos 16 anos, o casal, já "livre", se
prostitui em San Diego. O cinema abre janelas para mundos pavorosos - esta é uma
delas, com tentativas lamentáveis de nos emocionar com música e sentimentos sublinhados
que qualquer espectador são já estaria sentindo, pelo menos desde o início da
sessão. A cereja em cima vem na forma de um aviso de utilidade pública com estatísticas
estampadas na tela nos créditos finais. Se o tema é repulsivo, o filme não ajuda
muito. *** Julia, de Erick
Zonca (França, 2007) – Competição oficial Tilda
Swinton faz das tripas coração em Julia, e mostra que o bom ator é a
figura que mais chances têm de sair ileso de um filme que não funciona. É dirigido
pelo francês Erick Zonca, que agradou com o seu singelamente juvenil A Vida
Sonhada dos Anjos (1998). Swinton é a alcoólatra auto-destrutiva titular,
incapaz de ter um emprego e dando bom dia diariamente a homens que ela não lembra
bem quem são. A sensação de que Uma Mulher Sob Influência (1974), de
John Cassavetes, ronda o filme é saudável, e, de fato, Julia me parecia
promissor como character study, ajudado pela presença de Saul Rubinek
no papel bonito de um amigo totalmente do bem que, ele mesmo um ex-alcoólatra,
que põe-se na posição de protegê-la. Infelizmente, como no filme finlandês,
a segunda metade revela-se algo de desastroso.
A história toma o rumo
da incredulidade (no mau sentido) quando Julia participa do seqüestro de um garoto
cuja mãe, com claros problemas psicológicos, promete pagar bom dinheiro, plano
absurdo que nos leva ao deserto da Califórnia e pelo menos a um outro cine-símbolo
da imagem americana, a estação de ônibus - cenários que Zonca, francês, parece
ter deleite pessoal de usar. Logo, claro, estaremos no México, e o traçado no
mapa lembra algum thriller hitchcockiano (Intriga Internacional?), mas
com uma levada ainda Cassavetes para a Gena Rowlands de Zonca (a relação de Julia
com o garoto seqüestrado agora lembra Gloria). Outras semelhanças com
Clean, de Olivier Assayas, outro francês que filmou paisagens americanas,
acabam. O México, claro, é terra da bandidagem latina, e logo os muchachos estarão
enfiando armas nos narizes de todos como se aquele filme do início tivesse se
transformado num gangsta movie latino. Possíveis defensores terão que
argumentar muito para valorizar a embriaguez do roteiro, ainda maior que a da
própria personagem. Ironicamente, Swinton declarou-se na coletiva de imprensa
um péssimo copo. "Se bebo, durmo". *** Lake
Tahoe, de Fernando Eimbcke (México, 2008) – Competição
oficial Um
México bem mais leve, non-gringo, num filme também inegavelmente delicado
(talvez em excesso, isso existe? Existe...), está em Lake Tahoe, de Fernando
Eimbcke - que teve um primeiro longa bem sucedido nos festivais, Temporada
de Patos, exibido no Brasil algumas vezes, mas sem distribuição nos cinemas.
É aquele tipo de cinema latino jovem, de cinefilia estudada (Whisky,
El Otro), cuja minutagem regulamentar não parece poder exceder os 80
e poucos minutos, e onde, pelo menos nos primeiros 40, tem-se a sensação de que
o diretor está tentando tirar dois litros de leite de um pobre esquilo. Isso inclui
o tique artístico-nervoso dos planos fixos e telas pretas que Jim Jarmursch aprovaria,
aqui em tela larga tropical. Eventualmente, um segredo emotivo é revelado e tudo
vai ficando mais natural, ou organicamente compreensível. Esses 40 primeiros minutos
envolvem a procura de um mecânico para consertar um carro batido por um rapaz.
Até agora, um dos cinco melhores planos do festival está garantido para esse filme,
e a cena envolve Bruce Lee. Fica a dúvida se Branca de Neve, de João
César Monteiro, seria uma referência. Esse plano também me pareceu perfeito para
resolver um problema prático de produção envolvendo direitos de imagens caros.
Fofinho e querido, fator chateação fica apenas pelo fato de ser o tipo de filme
que muito se espera de um cinema latino moderno, e que festivais europeus de grande
destaque adoram. *** The Song of
Sparrows (Avaze Gonjeshk-ha), de Majid Majidi (Irã, 2008)
- Competição oficial A
Canção das Andorinhas, de Majid Majidi, mesma coisa. Uma volta (depois do
ótimo Fora do Jogo, ano passado) a uma certa saúde esquecida nos últimos
anos do cinema iraniano. Essa crônica singela sobre trabalho e família é uma melhoria
para quem viu o spielberguiano (no mau sentido) Crianças do Paraíso,
e deverá ser um sucesso em festivais e circuito biscoito fino. Com ritmo intenso
e fluente, temos um pai de família que se desdobra para trazer dinheiro para casa
e educar os filhos. Quer que cresçam fortes e trabalhadores, vendo aos poucos
que seu projeto de vida já é um sucesso, mesmo aprendendo no processo que melhor
do que se corromper no mundo feio da cidade grande é ficar no seu lugar e fortalecer
os laços familiares. Hmm...O personagem principal me causou empatia direta, talvez
por se parecer tanto fisicamente com Eli Wallach como Tuco, de The Good the
Bad and The Ugly, de Sergio Leone, embora de Tuco ele tenha muito pouca coisa.
Mistura de um Irã rural com o país urbano interessante. *** Elegy,
de Isabel Coixet (EUA, 2007) – Competição oficial A
espanhola Isabel Coixet (Minha Vida Sem Mim e A Vida Secreta das
Palavras) poderá estar passando para o próximo nível de uma carreira internacional
com Elegy, história de amor acima da média em termos de mercado, com
Sir Ben Kingsley e Penélope Cruz. Será o terror das senhoras em multiplexes à
procura de filmes mais "classudos" e circuito de arte biscoito fino, mundo à
fora. É uma adaptação do livro de Philip Roth sobre um professor de literatura
e crítico da New Yorker que, solteiro e caçador convicto, apaixona-se, já nos
seus 60, por uma estudante cubana que irá mostrar-lhe com quantos paus se faz
uma canoa. Curiosamente, essa personagem precisa ser latina, conservadora e dona
de um exotismo típico. Discussões relativamente francas entre Kingsley e seu melhor
amigo no filme, Dennis Hopper, são prazerosas de ouvir, e giram em torno do quão
pequena é a inteligência emocional desse intelectual. História toma rumo conhecido
ao final, para o delírio consternado do público alvo, não obstante o fato de estarmos
sempre em mãos seguras via Cruz, Kingsley, Hopper e diretora. *** Sabe-se
que parte da estratégia adotada por Harvey Weinstein, co-produtor e principal
canal do filme no exterior é de apresentá-lo como "political thriller",
um rótulo e tanto levando em conta que o presidente do júri é Costa Gavras,
autor reconhecidíssimo pelos seus thrillers políticos. Ontem pela manhã, cruzamos
com Padilha em Potsdamer Platz, coração da Berlinale, e segundos depois um estridente
grito "Caveira!!!" foi ouvido. Amigos brasileiros avistaram Padilha à distância.
O diretor teve entrevista de um quarto de página publicada na revista Screen
International, edição de sábado, onde fala do impacto do filme no Brasil
e também sobre o seu desejo de "fazer um filme em língua inglesa". Fevereiro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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