in loco
Dia 4: Clichês do cinema de arte e a Rainha Raquela
por João Cândido Zacharias

Os velhos clichês do cinema de arte

Fireflies in The Garden, de Denis Lee (EUA, 2008) – Fora de competição
Elegy, de Isabel Coixet (EUA, 2007) – Competição oficial

Dois filmes apareceram hoje que me fizeram pensar que buraco negro é esse em que se mete o “cinema independente americano”. Fireflies in The Garden parte do velho clichê da família disfuncional que, pelos olhos do filho mais velho, vai remoer traumas antigos – aqui, quando a matriarca morre num acidente de carro. Michael é um escritor infeliz que usa histórias de sua vida em seus livros. Ele e seu pai não se dão nada bem e a relação entre os dois, pelo que o filme dá a entender, é a matéria-prima de seus livros. Acontece que o interesse pelo filme, apesar de um elenco que tem Willem Dafoe, Julia Roberts e Emily Watson, some nos primeiros cinco minutos. Daí em diante vemos uma sucessão dos estereótipos desse cinema “independente” americano. Aí, tome pai que tortura o filho, mãe negligente, sobrinho que faz sexo com a tia, ex-mulher alcoólatra... Fireflies in The Garden só me fez pensar em uma coisa: que tipo de festival seleciona um filme desses?

Elegy me fez pensar o mesmo - só que o filme de Isabel Coixet, diferentemente do de Lee, está em competição. Aqui, Ben Kingsley e Penelope Cruz são um casal formado por um professor e uma aluna. A grande questão do longa é o que significa envelhecer para o personagem de Kingsley, um homem que, como o filme faz questão de deixar bem claro, sempre tentou se afastar ao máximo de qualquer contato emocional em sua vida. Mas Coixet também mergulha fundo nos clichês desse subgênero: ele é um professor culto, conhecedor de artes, que quer levar a namorada ao Museu do Prado; ela, a moça latina, de personalidade forte, mas com seu lado frágil. Nos quinze últimos minutos, a diretora ainda apela para a doença terminal que, ao que parece, é o tema que vem explorando desde Minha Vida Sem Mim. Ainda que mostre certa melhora desde esse seu primeiro filme (e Ben Kingsley é um dos poucos acertos), Coixet ainda mantém forte um certo tom pedante, “artístico”, como aquele amigo que todo mundo tem que vive citando autores conhecidos e se auto-intitulando grande entendedor de arte. O resultado que fica é mesmo esse: puro exibicionismo.

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Uma boa surpresa

The Amazing Truth About Queen Raquela (Die reine Wahrheit über Queen Raquela), de Olaf de Fleur (Islândia, 2008) – Panorama

Fui assistir a The Amazing Truth About Queen Raquela numa daquelas situações típicas de festival: com horário vago, escolhi um filme pela curiosidade levantada por seu título. Normalmente, isso não costuma dar frutos muito animadores. Mas Queen Raquela foi uma boa surpresa numa noite de domingo. Raquela é um travesti filipino, como centenas que existem por lá. O islandês Ola de Fleur ficou fascinado com sua história de vida e resolveu contá-la em filme, numa interessante mistura de documentário com re-encenação. O longa é estrelado pela própria Raquela, que conta sua vivência: prostituta nas Filipinas, ela tem o sonho de morar em Paris. Aos poucos as coisas vão acontecendo em sua vida e ela começa a ver seu sonho cada vez mais próximo.

Raquela é um personagem único e o filme faz questão de se deixar envolver por seu mundo. Seja nas Filipinas, na Islândia ou em Paris, Olef de Fleur deixa Raquela contar sua historia, mesmo que não como em um documentário convencional, com narração ou depoimentos. Essa linha entre verdade e re-encenação é bastante tênue aqui. Se em alguns momentos fica claro que certa cena está acontecendo pela primeira vez ali, em frente à câmera, espontaneamente, em outros momentos a encenação é escancarada, como no atropelamento de Raquela ou em toda a seqüência envolvendo o encontro com Michael, o americano.

Vale contar também que Raquela estava na sessão (apresentada como atriz do filme) e foi muito aplaudida quando o filme terminou.

Fevereiro de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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