in loco Dia
3: O passado, Cassavetes revivido e um olhar infantil por
João Cândido Zacharias Na última
pagina da Screen que sai todo dia por aqui, tem um quadro de cotações com os filmes
em competição, o que pode ser um bom medidor de como os filmes estão sendo recebidos
de um modo geral, pela imprensa do mundo. José Carlos Avellar está entre
os críticos dando estrelinhas para o quadro. Por enquanto, Sangue Negro
está disparado na frente como o filme melhor votado (nota 3,3 sobre 5).
O pior (0,9) é Gardens of The Night, drama sobre prostituição
dirigido por Damian Harris, que eu perdi. Estou curioso para ver como Tropa
de Elite vai se sair nesse quadrinho. O passado,
esse monstro Boy A, de John Crowley (Reino
Unido, 2007) – Panorama Invisible City, de Tan Pin Pin (Cingapura,
2007) – Fórum Uma
questão muito cara ao cinema é como lidar com o passado. O que a história
pode significar para o futuro? Boy A e Invisible City, dois
filmes a princípio completamente diferentes, parecem voltar a essa questão,
cada um a sua maneira. O filme do irlandês John Crowley tem inicio no dia em que
o jovem Jack esta saindo da prisão. Usando um nome novo, ele vai recomeçar a vida
com a ajuda de seu conselheiro e agente de condicional. Jack, quando criança,
matou uma colega de escola ao lado de seu melhor amigo que, por sua vez, se enforcou
na cadeia. Esse passado que Jack carrega não é um fardo leve, não é
um problema simples. A pergunta levantada por Boy A é: é
possível começar uma nova vida tendo um passado como esse nas costas? Infelizmente,
John Crowley parece ávido por uma resposta satisfatória e objetiva (ao contrário,
por exemplo, de David Cronenberg em Marcas da Violência). E nessa busca
por uma resposta, ele acaba ficando no raso, tanto de seu personagem (o tempo
todo assombrado pelas lembranças) quanto de seu redor (um mundo que vai necessariamente
condenar e onde o perdão parece só existir em sonho). Já
em Invisible City, a documentarista e vídeo-artista Tan Pin Pin
vai investigar o passado num sentido bem mais amplo do que o da história
mais pessoal de Boy A. Ela entrevista várias pessoas ligadas à
pesquisa e interessadas em preservação do passado recente de Cingapura, desde
um cineasta amador com centenas de rolos de filmes do país nos anos 50, até
um grupo de arqueólogos. Todos os entrevistados trazem, à sua maneira,
a questão de como lembrar do passado (mesmo que recente, como a ocupação japonesa,
que só teve fim em 1965) é importante para se construir o presente e pensar
o futuro. Nesse grupo, o personagem mais interessante talvez seja o cineasta amador
que, com uma doença degenerativa, não consegue lembrar palavras e tem dificuldade
para manter uma conversa. Sua memória esta indo embora ali, na frente da câmera,
o que dá uma forca ainda maior a seu discurso de preservação de seus filmes.
Levando-se em conta o conturbado passado de Cingapura (que,
além da ocupação, teve seu boom econômico nas últimas décadas),
parece que essa preservação do passado se faz cada vez mais necessária. E o filme
mostra isso de maneira fabulosa, por exemplo, no rosto de um dos arqueologistas
contando sua mais recente descoberta: uma garrafa de Coca-Cola da década de 50
encontrada num bunker em ruínas do exercito japonês. Aquela é
uma simples garrafa de refrigerante, que inclusive se parece muito com a que é
usada ainda hoje. Mas para aquele grupo de exploradores, é quase como a
descoberta de uma ossada de dinossauro. E, aí sim, o filme lembra Boy
A, por acreditar ue o passado pode ser reavaliado e que a vida pode sim seguir
em frente. E é curioso pensar isso tudo aqui em Berlim,
onde se fazem tão presentes pedaços do muro e (não tão presentes) histórias
da Segunda Guerra e do nazismo. A Alemanha parece também acreditar e mostrar que
pode-se andar em frente, apesar de e assumindo o seu passado. *** Lembrando
John Cassavetes Julia, de Erick Zonca (França,
2007) – Competição oficial E
por falar em passado, é interessante também ter visto Julia tão
perto desses filmes, já que o segundo longa de Erick Zonca (nove anos depois de
A Vida Sonhada dos Anjos) tem também um diálogo bem forte e objetivo
com o passado: ele é assumidamente inspirado em Glória,
de John Cassavetes, ainda que não se trate de uma refilmagem. Julia,
também um titulo de um nome feminino, é estrelado (no mais radical sentido
da palavra) por Tilda Swinton, que parece reencarnar Gena Rowlands (ainda que
ela não tenha morrido) no rosto, trejeitos, roupas, óculos, cabelo... Mas
a verdade é que dá um alívio quando você percebe que, ufa,
Erick Zonca não quer reencarnar Cassavetes. Alívio porque Zonca parece
ter seu próprio projeto, suas próprias idéias. Glória é
um daqueles (vários) buracos negros da minha cinematografia, mas vi a refilmagem
de Sidney Lumet e sei basicamente como se desenvolve a história do filme
de Cassavetes. Se estão presentes em Julia a relação entre a mulher e
a criança e o esquema de caça/fuga, o que parece mais lembrar Cassavetes
aqui é mesmo a presença de Julia, a personagem, e a maneira como o filme
existe para ela e se desenrola em torno dela. Julia
é uma alcoólatra, daqueles mais pé na jaca possível, que fica loucona todos
os dias da semana, perde o emprego por causa disso, transa com desconhecidos toda
noite etc. Seguindo o conselho (quase intimação) de um amigo, ela resolve procurar
uma reunião de AA e lá conhece Elena, uma mexicana com um plano louco de seqüestrar
seu próprio filho que está, segundo ela, sendo mantido como prisioneiro
na mansão de seu avô paterno. Julia vê aí uma oportunidade de ganhar
dinheiro, seqüestrando o menino. Acontece que Elena é claramente uma louca,
com um plano que nunca poderia dar certo. Mas será mesmo? Com
sua câmera sempre em cima de Tilda Swinton, que por sua vez tem uma interpretação
incrivelmente controlada, Erick Zonca se mantém durante as duas horas e meia de
filme acreditando em tudo o que Julia acredita. E aí, toda a sorte da personagem
(que chega a envolver seqüestradores mexicanos) será totalmente crível, mesmo
que, num olhar externo, possa parecer surreal. O filme parece, na verdade, controlado
pela mente e pelos olhos de Julia. E os acontecimentos vão se desenrolando um
atrás do outro e o filme vai sendo levado junto. O grande mérito de Julia,
o filme, é esse: entregar-se totalmente a Julia, a personagem. *** Por
um olhar infantil Somers Town, de Shane
Meadows (Reino Unido, 2008) – Geração Existe
no cinema uma discussão eterna sobre o que define um filme infantil. O adjetivo,
usado muitas vezes com desprezo, parece a melhor definição para Somers Town,
sétimo longa de Shane Meadows. O filme conta a história do nascimento da
amizade entre Tomo e Mareck. Tomo acaba de chegar a Londres, vindo do norte do
país, fugindo da vida sem sentido que tinha por lá. Mareck, imigrante polonês,
mora com o pai num pequeno apartamento. Os dois têm 16 anos e se conhecem por
acaso, num café. Somers Town parece a princípio um projeto sem
grandes ambições - e saber que era, em sua gênese, um filme feito para a TV, com
o apoio do Eurostar, talvez explique isso. Mas Meadows abraça essa falta de ambição,
no sentido que não vai tentar criar grandes teorias ou pensamentos sobre a vida
de adolescentes em Londres. Tomo e Mareck são dois jovens
comuns, que se apaixonam pela mesma mulher, passam o dia perambulado pelas ruas
e tomam o primeiro porre juntos. O filme abraça essa intimidade entre eles e,
ainda que vez ou outra tente criar momentos mais “dramáticos” (o assalto a Tomo,
a relação de Mareck com o pai), é mesmo levado pela criação desse dia-a-dia
entre os dois. Não à toa, duas perguntas sobre o tom do filme apareceram ao final
da sessão: uma espectadora queria saber do diretor porque esse filme, depois de
ter trabalhado com temas tão pesados em seus últimos longas (This Is England
e Dead Man’s Shoes); e outra perguntou se o diretor considerava seu novo
longa uma comédia. Meadows disse que não pensou o filme assim, mas que
assistindo com aquela platéia, pela primeira vez (o longa ficou pronto há menos
de uma semana), ele riu bastante. Disse também que achou que precisava fazer algo
mais leve depois de seus últimos trabalhos e que o roteiro pedia isso. Somers
Town foi uma boa surpresa, um filme que eu não estava esperando assistir,
depois das referências que tinha tido de Meadows – sendo famoso esse “peso”
de seus últimos filmes. Um filme infantil porque feito pelos olhos de dois personagens
que, apesar da idade, ainda levam a vida como crianças, com suas descobertas.
Em suma, um filme que se encaixa no velho clichê “para toda a família”. Fevereiro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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