in loco Dia
2: Ainda sobre Sangue Negro por Kleber Mendonça
Filho Sangue negro/There Will
Be Blood, de Paul Thomas Anderson (EUA, 2007) – Competição
oficial Diálogos com P.T. Anderson Sangue
Negro, de Paul Thomas Anderson, passou sexta na competição. Acho que o mesmo
ficou curto em mim, ou eu sobrei nele. Admiro o corte do tecido, mas me fez pensar
sobre o prazer racional de ver um filme contra o prazer visceral de ter um filme,
coisa que já tinha me ocorrido na respeitável capacidade de não se ter absolutamente
nada a acrescentar de Shine a Light, filme de abertura do Scorsese. Entra
aí como base uma certa cinefilia embutida que não apenas você, como espectador,
tem, mas principalmente o diretor lhe traz. E nada tem a ver com conclusões apressadas
de festival. Se
Shine a Light nos dá mais um show filmado dos Rolling Stones por um mestre
inconteste, numa carreira de performances filmadas em praticamente todos os formatos
existentes de imagem nesses 40 e tantos anos, Sangue Negro nos traz mais
uma crônica masculina de auto destruição que representa uma reflexão sobre a própria
cultura americana do capitalismo e da competição. Sangue
Negro é uma das obras mais prestigiadas da atual temporada, não apenas via
aprovação praticamente universal da crítica americana (foi lançado nos EUA em
dezembro), mas também pelas suas oito indicações ao Oscar. O filme, que teve seu
lançamento em mercados internacionais sustado para que tivesse a estréia oficial
no exterior em Berlim, deverá chegar no Brasil e na maioria dos mercados já nesta
próxima semana. De qualquer forma, difícil ignorar um calhamaço de cinema como
esse. Na verdade, não sei bem o porquê de eu mesmo usar a palavra calhamaço, talvez
pelo fato de vir de um livro. Vale observar que a palavra "épico" vem sendo utilizada
livremente para apresentar o filme, e me pergunto se não há uma tentativa de sugerir
algo que ele talvez não seja. Dias
antes de vir a Berlim, sentei para rever em DVD A Filha de Ryan (Ryan´s
Daughter, 1970), uma coincidência, pois, sem querer entrar agora nas questões
relacionadas ao filme de David Lean, suas críticas mais duras na época foram acusações
de que seria uma história relativamente pequena ampliada de maneira monstra pela
paisagem circundante e pelo seu Super Panavision. O tom épico de Sangue Negro,
se é que ele tem, vem provavelmente de uma saga que dura 30 anos. Anderson é ambicioso
na sua imagem, mas o filme mantém-se relativamente pequeno não obstante o Panavision
cristalino da fotografia. Impecavelmente bem realizado com recursos claramente
limitados para olhos técnicos, os personagens em cena são não mais do que cinco,
sendo três deles de fato essenciais para a compreensão do principal, Daniel Plainview
(Daniel Day Lewis). Sangue Negro é, de fato, a adaptação
de um livro de 500 páginas escrito por Upton Sinclair, originalmente intitulado
Oil! Segundo Anderson (indicado ao Oscar de Melhor Diretor), que esteve
na coletiva de imprensa organizada para o filme acompanhado por Daniel Day Lewis
(indicado a Melhor Ator) e por Paul Dano, ator que oferece perfeito retorno para
o personagem de Day Lewis, "eu vi o livro numa livraria de Covent Garden, em Londres,
e não tinha como não vê-lo. A capa é vermelha com a palavra OIL escrita bem grande
com um ponto de exclamação. Talvez por eu ser californiano de nascença, o tema
me atraiu imediatamente". Publicado em 1927, Oil! originalmente contém
inúmeros subtextos que não entraram no filme, como a Revolução Russa e a política
em Washington. "Como sempre em tratando-se de adaptações literárias para o cinema,
o livro é um belo ponto de partida, e você desenvolve a partir dali. Haviam idéias
que me interessavam mais do que ao próprio Sinclair, e vice versa. A base de uma
boa história é a modéstia da premissa", disse Anderson. Sangue
Negro tem um aspecto sensorial notável, estabelecido por um primeiro rolo
inteiro narrado por imagens que unem o panorâmico num sentido claramente western
ao detalhe minucioso absoluto, uma mixagem de som linda (também indicada ao Oscar)
e uma partitura musical que irá desafiar os mais conservadores a considerá-la
música. Isso, aliás, levou membros da audiência em Berlim a assoviar e bater palmas
de protesto contra a organização por acreditarem que o sistema de som estaria
com algum problema. Yeah. O uso desses sons em trilha sonora,
composta por Jonny Greenwood, do Radiohead (soa como o canal esquerdo da última
fase dessa banda inglesa) traz para o filme uma organicidade que distancia cada
um dos seus momentos do óbvio, às vezes até indo contra a corrente dramática de
uma determinada situação, e que encontra sintonia na presença de Day Lewis, no
papel de Daniel Plainview. De subidas atmosféricas não muito distantes do letreiro
de abertura de Contatos Imediatos de Terceiro Grau, do Spielberg, a pancadas
rítmicas em algum tonel da esquina, me parece que essa atração de Anderson por
um certo som já mostrara-se presente no seu filme anterior, Embriagado de Amor,
outro primor de planejamento sonoro. Esse
Daniel Plainview, personagem principal, é um homem leviatã que parece canalizar
para si próprio uma certa casta de personagem masculino americano, um predador
pessoal e social faminto por poder, dinheiro e dotado de pouquíssimas habilidades
para administrar o outro, exceto de cima para baixo e, se possível, à distância.
Talvez seja exatamente esse perfil dramático que tenha me afastado do filme. Não
só já vi e senti esses personagens, como o próprio filme de Anderson parece esperar
grandeza de tal enfoque. Talvez Anderson espere grandeza
pelo fato de esse arquétipo do americano poderoso e auto destrutivo fazer parte
do perfil cultural já analisado algumas vezes por filmes que, por um grande acaso,
ocupam o olimpo do cinema. Como foi lembrado por colegas na coletiva, esta figura
central de Sangue Negro não estaria longe de um Cidadão Kane, que
Orson Welles reprocessou a partir de Randolph Hearst. Eu acrescentaría ainda um
Jake La Motta (de Touro Indomável), que Martin Scorsese retrabalhou no
nível urbano a partir do boxeador nova iorquino que afastou-se de tudo e de todos
num impressionante processo de auto destruição. Vito Corleone também não está
longe. Não
é difícil também olhar para as imagens panorâmicas de Anderson e seu fotógrafo
Robert Elswit (imagens de um cinema clássico "filme-película" muito em sintonia
com o que Roger Deakins fez com os Coens em Onde os Fracos Não Têm
Vez) e não pensar em obras que versaram sobre o estofo formativo da sociedade
americana, de Vinhas da Ira, de John Ford, a Era Uma Vez no Oeste,
de Sergio Leone, chegando novamente no filme dos Coens que, me parece, analisa
um certo histórico de violência americano. Ficamos com Plainview,
nome simbólico não só para as composições largas do filme, mas também para a onipresença
do personagem nessa obra. O desejo de Plainview para com os outros sugere mesmo
que fracos não tem vez, e é definida num diálogo revelador sobre seu desinteresse
pela humanidade: "Eu tenho a competição dentro de mim. Às vezes só penso em ganhar
dinheiro para ficar longe de todos". Ele também mostra-se pré programado para
a auto-destruição, algo poeticamente marcado pelo titulo original (sangue será
derramado). É um elaborado exercício sobre um personagem já sentido antes. Obviamente
que Anderson, talentoso, injeta a sua energia própria. Ao procurar os toques autorais
desse jovem americano, vale lembrar do seu aparente interesse pela idéia de família
(Jogada de Risco, Boogie Nights, Magnólia, Embriagado
de Amor) e a presença da religião, tanto no filme como corpo como nas suas
narrativas (Boogie Nights, Magnólia). No entanto,
em Sangue Negro, Anderson parece menos carola do que o habitual (nada contra,
a princípio - gosto dos seus filmes anteriores), e mais duro em relação à idéia
de esfacelamento da família através do desejo de poder e dinheiro. Há cenas importantes
em templos onde demônios são exorcizados, e essas cenas, através do personagem
Eli, me lembraram a doutrina sexual do personagem de Tom Cruise em Magnólia.
Sobre
estilo, se Welles usa a energia luxuosa da câmera de cinema, e Scorsese (para
ficar nos dois exemplos aqui trazidos) trouxe essa dramaticidade para o apartamento
vizinho, Sangue Negro parece mimetizar esse americano como sendo produto
da própria terra, do próprio solo americano. É do solo que surge não apenas Daniel
Plainview, mas aquilo que o fará rico. Na verdade, o homem sai do chão logo na
abertura. O impacto da atuação de Lewis revelou-se grande
também na imprensa em Berlim via perguntas atordoadas de jornalistas na coletiva,
em especial sobre o significado, para um ator, de acessar alguém assim. O ator
inglês respondeu refletindo que "atuar significa também sentir atração por aquilo
que você não quer". Anderson completou afirmando que, da mesma forma, fazer cinema
é como procurar petróleo ou garimpar. Você se ausenta de casa por três meses,
e ao longo do processo vai fazendo umas descobertas, acha uma pepita aqui, e vai
ficando ganancioso, e isso te leva a outras descobertas e a outras demonstrações
de ganância pessoal e material, ou artística". Eu escrevi
essa semana sobre Sweeney Todd e o fato de muito se reclamar de Hollywood,
mas que é Hollywood quem banca algumas das maiores insanidades autorais do cinema.
E só temos que agradecer por isso. Mais uma vez, numa safra tão autoral, onde
filmes de grande porte, ao que nos parece, só poderiam ser feitos dessa forma,
por diretores de visão claramente americana, vale destacar a capacidade que alguns
desses filmes têm de nos levar ao incomum, apresentando retratos culturais corajosos
e perfis humanos desagradáveis que não fazem parte do mercado. Nesse
sentido, os 15 minutos finais de Sangue Negro confirmam o filme forte que
vinha sendo construído em direção a esse desfecho, e coerência é um dos elementos
mais ausentes no cinema, preocupado demais com o lucro. Essa seqüência final tem
algo de uma identidade americana particular, com destaque para o cenário da coisa
em si, perfeitamente ilustrativo de uma certa decadência da riqueza. É uma seqüência
estranhamente bastarda, filha de Kane ou Sunset Boulevard, e realizada
sem medo. Fevereiro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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