in loco
Dia 2: Ecos de Scorsese/Stones, “filmes de festival”, o homem mau de PTA e Gregg Araki restaurado
por João Cândido Zacharias

Na noite do primeiro dia, aqui na sala de imprensa, dava para escutar os gritos histéricos no Palast, logo ao lado, com a chegada dos Stones e de Scorsese para a sessão oficial de Shine a Light. Quando saí, vi a multidão do lado de fora, uma quantidade enorme de gente. Já hoje de manhã, descobri pelas revistas diárias que rodam por aqui (Variety, Screen e Hollywood Reporter) que a passagem de Scorsese e da banda por aqui fez muito mais barulho do que eu imaginava. Parece que a coletiva (da qual eu passei longe) lotou quase uma hora antes do horário marcado. E isso, para Berlim, é uma coisa bem grande: primeiro, porque a sala da coletiva é enorme, bem maior do que a de Cannes; e segundo, porque aqui lotar pra eles significa lotar MESMO, com o chão abarrotado de gente e ainda muito mais gente em pé.

Um pouco mais cedo, na coletiva do júri, o diretor do festival, Dieter Kosslick, anunciou que o grupo que estava ali tinha sofrido duas perdas: saíram do júri a diretora dinamarquesa Susanne Bier e a atriz francesa Sandrine Bonnaire. A primeira, por motivos de trabalho (parece que ela começa a filmar em março e ainda não tem elenco) e a segunda, por “motivos familiares”. Costa-Gravas, presidente do júri, disse que o grupo nem aventou a hipótese se substitui-las. O resto do júri conta com Shu Qui (atriz de Three Times, de Hou Hsiao-hsien), Walter Murch (montador de, entre outras mil coisas, Apocalipse Now), Uli Hanisch (cenógrafo alemão de Perfume – A história de um assassino), Alexander Rodnyansky (produtor de TV russo) e Diane Kruger (a atriz alemã de Tróia e A Lenda do Tesouro Perdido).
Mas, vamos aos filmes.

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Wonderful Town, de Aditya Assarat (Tailândia, 2007) – Forum
Le premier venue/Just Anybody, de Jacques Doillon (Franca e Bélgica, 2008) – Forum
Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke (México, 2008) – Competição oficial

Três “filmes de festival”

Esses três filmes, a princípio, não teriam muito porque estar juntos num mesmo texto. Mas tendo-os assistido com o espaço de pouco mais de um dia entre o primeiro e o terceiro, não pude deixar de misturar na minha cabeça algumas idéias sobre como cada um deles trabalha com exatamente aquilo que se espera de um “filme de festival” – com todas as aspas necessárias.

Wonderful Town me parece, a princípio, o que se sai pior nessa equação. O filme fala da relação de Ton, arquiteto recém-chegado a uma cidadezinha de praia onde vai supervisionar uma obra, e Na, dona do hotel onde ele aluga um quarto. Aditya Assarat (de quem, confesso, nunca tinha ouvido falar) se apropria da idéia de um certo cinema oriental para criar sua atmosfera de “contemplação”, “calma”, “serenidade”. Ou seja: dá-lhe planos longos de árvore e da natureza, a lenda de um casa abandonada mal-assombrada, ruinas de uma construção... o filme parece nos lembrar o tempo todo que tem Apichatpong Weerasethakul e Jia Zhang-ke como influências diretas. Mas o que o cinema daqueles dois cineastas tem de transcendental, mágico, fabulaico, Assarat parece ter só de cópia.

O mesmo não pode ser dito de Jacques Doillon, por mais que (outra confissão) eu desconheça sua longa filmografia (bastante elogiada especialmente nos anos 70) até aqui. Mas, se existe um nicho no qual este Le premier venue se encaixe, seria o daquele velho preconceito do filme francês, onde muito se fala e pouco se faz. O filme narra a história do triângulo amoroso que se forma entre a jovem Camille, apaixonada pelo bandido Costa, e o policial que se apaixona por ela – e que é amigo de infância de Costa. Talvez narrar seja a expressão errada, já que Doillon não parece muito interessado em contar uma história, nem linearmente (já que as ações dos personagens parecem sempre arbitrárias e com o propósito muito mais de criar uma situação), nem por imagens (os planos, as cores, a cenografia, tudo parece mostrar um certo descaso).

No entanto, nessa longa sequência de situações (o filme tem exatas duas horas de duração), aflora aquele que parece ser o interesse real de Doillon: os atores. Colocá-los juntos e fazê-los interagir, esta parece ser a grande razão de ser de Le premier venu, e de fato dai surgem belos trabalhos, como os de Gerald Tomassin (Costa) e Gwendoline Godquin (que faz a ex-mulher de Costa). É uma pena que o interesse acabe por ai.

Por fim, Lake Tahoe parece ser o que se sai melhor dentro dessa idéia pré-formatada de “filme de festival”. O segundo longa do mexicano Fernando Eimbcke (depois de Temporada de Patos, que passou pelos festivais brasileiros) nos apresenta um dia na vida de Juan, menino de 16 anos que acaba de bater seu carro num poste. Mas esse não e o único problema na vida de Juan, como vamos descobrindo aos poucos. Em sua peregrinação para consertar o carro, o menino vai encontrar alguns tipos pela cidade. Lake Tahoe é um filme em cinemascope com, dois, talvez três planos com movimento de câmera. De resto, todos são planos parados, muitos deles separados por uma tela preta de alguns segundos. Além da longa duração dos planos, os silêncios espaçados entre os diálogos ajudam a inserir o filme num formato de realização que tem sido bastante presente nos festivais recentes.

Mas, se Eimbcke decide usar esse artifícios para contar sua história, é verdade que ele tem bastante sucesso em não se deixar dominar por eles. O filme vai parece ser milhares de coisas, apenas para logo depois desmenti-las: primeiro, a peregrinação de um menino para consertar seu carro; depois, a confusão com um mecânico que acha que ele estava tentando roubá-lo; depois, o drama de família... Todas essas situações aparecem pelas beiradas, nunca tomam conta do filme – que ao final se revela mesmo uma crônica sobre aquele dia na vida de Juan, buscando um olhar a partir dos olhos do próprio menino, por mais que todos aqueles artifícios formais fizessem isso parecer quase impossível. O filme tem ainda um humor inesperado, que cria uma leveza quase inimaginável. É por isso que, mesmo dentro de seu formato pré-concebido, Lake Tahoe é o que vai ficar mais presente na memória.

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Sangue negro/There Will Be Blood, de Paul Thomas Anderson (EUA, 2007) – Competição oficial

A história do homem mau

Paul Thomas Anderson sempre foi muito comparado a Martin Scorsese. Quem gosta, diz que ele lembra o diretor novaiorquino; quem não gosta, diz que ele copia. Boogie Nights e Magnólia, em especial, parecem mesmo ter uma influência forte de Scorsese – na composição dos planos, nos travelings e chicotes de câmera, no uso da trilha sonora etc. Pois em Sangue Negro, a referência também aparece, só que agora numa chave completamente diferente e insuspeita.

Como filmar uma “pessoa má”? Como ter um protagonista assumidamente mau? Como fazer um filme do ponto de vista desse personagem? Desde Taxi Driver, Scorsese parece estar constantemente respondendo a essa pergunta, tendo passado por filmes como Os Bons Companheiros, Cabo do Medo e Os Infiltrados. Acontece que o homem mau de Scorsese que parece mais ecoar em Sangue Negro é, não por coincidência, o Bill The Butcher, de Gangues de Nova York, interpretado pelo mesmo Daniel Day-Lewis que protagoniza o filme de Paul Thomas Anderson. Bill e Daniel Plainview, o explorador de petróleo do oeste americano de Sangue Negro, têm em comum não só o rosto de Day-Lewis, mas também essa maldade intrínseca, que parece ser o motor de suas vidas. Em determinado momento de Sangue Negro, na única cena em que Plainview se mostra aberto a algum tipo de relação com outras pessoas, ele confessa: “Eu odeio a maioria das pessoas. Eu quero ter dinheiro suficiente para poder ficar longe de todo mundo”.

Ao lado do fotografo Robert Elswit (o mesmo de todos os seus filmes), do musico Jonny Greenwood (guitarrista do Radiohead) e da interpretação de Day-Lewis, Paul Thomas Anderson vai fundo na história de Plainview. Parecendo a principio ser um épico sobre como um homem construiu seu império, Sangue Negro vai, aos poucos, se mostrando exatamente o contrário: a história bem particular de um homem mau que vai deixando essa maldade cada vez mais tomar conta de sua vida. Não é de estranhar, portanto, que o filme vá enlouquecendo junto com Plainview e faça essa loucura ecoar com força em seus 40 minutos finais. Se o projeto de cinema de Paul Thomas Anderson, como ele mesmo não esconde, é de porte grandioso e de uma auto-importância explicitada a todo momento, em Sangue Negro ele talvez tenha encontrado o personagem que melhor se encaixa nesse projeto.

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The Living End, de Gregg Araki (EUA, 1992) – Panorama

Filme politico?

Gregg Araki é um dos (muitos) diretores que começaram suas carreiras num nicho muito especifico do cinema independe americano dos anos 80: o queer cinema, o cinema gay que teve seu representante mais ilustre no Gus Van Sant de Mala Noche e Garotos de Programa – não à toa, The Living End lembra muito esses dois filmes. Jon e Luke são dois personagens criados em cima de estereótipos: o intelectual com uma vida acomodada e o rebelde sem causa com uma existência errática. Mesmo a composição física dos dois e oposta: Jon é magro, branquelo, cheio de pêlos; Luke é forte, bronzeado, imberbe. Na noite em que se encontram, eles descobrem que a única coisa que têm em comum é que ambos são HIV-positivos. Quando Luke mata um policial, The Living End vira um road movie em fuga, ainda que não exista um perseguidor.

O momento histórico em que o filme foi feito (1992, com Bush-pai na Casa Branca e a AIDS ainda tida como uma epidemia sem controle) parece gritar o tempo todo na tela, seja pelas roupas, cenários e maquiagem ou pelo discurso político de Luke. Mas, datado certamente é um adjetivo que não cabe a The Living End. Se ficaram para trás a revolta com a chegada da AIDS e o descaso de governos com o seu tratamento, continuam ainda muito presentes a eterna fuga e o discurso político mais objetivo (e é curioso, engraçado até, ver Luke dizer em certo momento “vamos ate Washington infectar Bush com nosso sangue”).

Mas, tudo isso deixado de lado, o que permanece com mais forca em The Living End é a história de amor selvagem construída por Araki. E é aí que os dois filmes de Gus Van Sant se fazem lembrar: Jon e Luke são uma versão mais radical do casal de Mala Noche, trazendo para seu romance (impossível?) questões de sobrevivência. Se no início do filme um médico diz a Jon que ele não deve tomar o resultado de seu exame de sangue como uma sentença de morte, o que Luke quer mostrar para ele e que sim, o exame de sangue é uma sentença de morte, e que só assumindo isso será possível se entregar por completo à vida. A cena final explicita isso com uma força terrível: a vida (sexo) acontecendo ao lado da morte (a arma). Se o desejo de Araki era, em 1992, fazer um filme político, pode-se dizer hoje, 16 anos depois, que ele conseguiu: a história de amor de Jon e Luke, levada a extremos, é seu discurso mais pertinente.

Fevereiro de 2008

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