in loco - cobertura dos festivais
Ben X - A Fase Final (Ben X), de Nic Balthazar
(Bélgica, 2007) por Renata Gomes
Juventude
em jogo
Ben X – A fase final conta a história
de um adolescente que sofre de Síndrome de Asperger, uma forma mais branda de
autismo. Com extrema dificuldade de socialização e comunicação, Ben sofre a cotidiana
opressão de seus colegas de escola pública. Como refúgio contra essa vida dolorosa,
Ben mergulha em Archlord, um MMORPG: massive multi-player online role-playing
game – ou seja, um videogame jogado por milhares de pessoas online
ao mesmo tempo, cada qual operando um personagem num mundo virtual de temática
à la Tolkien. No jogo – que existe fora do filme – Ben é “nível 80”, um
herói, em oposição ao “ninguém” do mundo real: tem armas e poderes cobiçados e
até uma princesa apaixonada por ele. A melhor dica para mergulhar
no filme é ir munido de uma boa dose de generosidade infanto-juvenil, pois tudo
nele está embebido em um olhar muito particular, indissociável de algo contemporâneo
e ingenuamente jovem: da referência ao machinima à narrativa auto-referente
e otimista, passando pela facilidade tecnológica de celulares, câmeras, internet
e afins. Baseado num episódio real da vida de um adolescente autista oprimido
por colegas de escola, o filme tenta nos manter na corda-bamba, misturando linguagens
que vão do documental ao game, passando por uma ficção euro-juvenil com certos
ares de Corra, Lola, Corra. Para
tentar representar essa realidade paralela na qual Ben se refugia, o filme faz
uso da técnica de machinima: a captura de imagens diretamente do videogame,
a partir da “interpretação” de atores-jogadores. Funciona mais ou menos assim:
cada ator opera seu personagem virtual e “joga” o game, não visando a competição,
mas uma atuação ficcional. A “câmera virtual”, embutida no jogo e também operada
por um jogador, enquadra e grava as imagens da encenação/jogo, que depois serão
dubladas e editadas, como uma animação de computador. A grande diferença entre
machinima – corruptela de machine cinema ou “cinema maquínico” –
e computação 3D é que as imagens do machinima são geradas e capturadas
em tempo real, mantendo, assim, alguma qualidade inerente ao jogar, inclusive
certas limitações que marcam a linguagem do videogame. A
técnica de machinima não foi inventada pelo ou para o filme, e tem sido
explorada há pelo menos uns 20 anos, inclusive como ferramenta para o próprio
cinema, sobretudo na geração de cenas de batalha e de multidões. Fora do cinema,
no universo da fan culture, o machinima vem se transformando num
formato de valor próprio, capaz de gerar obras tão diversas quanto a série Red
vs. Blue – que problematiza com humor a natureza robótica dos personagens
e cenários de games de tiro – a animações requintadas como Anna,
da Fountainhead, passando por performances de humor ao vivo, como as que são feitas
pelo grupo Ill Clan. O machinima
chegou a um patamar já tão requintado, que conta com diversos festivais específicos,
onde criatividade, invenção de linguagem e inovação tecnológica disputam os maiores
prêmios. Dentro
desse cenário tão diverso, a utilização que o filme faz do machinima é
ainda um tanto tímida. O máximo a que chega é entrecortar as cenas “reais” vividas
por Ben com cenas tiradas do game, nas quais o personagem projeta a si mesmo como
o herói Ben X e aos colegas como inimigos do jogo, na tentativa de dar sentido
ao vivido a partir de seu repertório de sucesso em Archlord. Nisso, o filme
parece querer deixar claro que Ben vive o jogo assim como a vida, fazendo
pouca distinção entre ambos, o que não deixa de ser a grande marca dos games de
personagem. São bons momentos do filme, mas não preservam
muito do frescor do jogar. Quase tudo mais se atém ao game em seu nível meramente
temático: as amizades virtuais, a recorrência à violência, a natureza de sonho
de quem se isola do mundo num universo fantástico de trolls, magos e outros
seres, inexistentes no mundo real, mas muito reais para certo nicho de pendor
fantástico como jogadores de RPG. A partir do momento em que a opressão leva Ben
ao limite, contudo, a linha entre fantasia, auto-referencialidade e verossimilhança
começa a se tornar perigosamente escorregadia. O que até então era uma história
“baseada em fatos” começa a ficar cada vez menos verossímil, e se isto não é necessariamente
ruim, requer ao menos que ajustemos nossos ponteiros com os da narração. Certos
procedimentos, como as inserções “documentais” de pais e amigos de Ben, até então
usados aparentemente como estilo, começam a dar na vista, ficando mais para pegadinha
do que para algo que enriqueça a narrativa. Quando a amiga virtual de Ben ganha
corpo no mundo “real” do filme, tudo se complica ainda mais e qualquer carga de
realidade se esvai, mesmo com muito boa vontade de quem vê. No final, a única
maneira de seguir aproveitando o filme é continuar lançando a ele um olhar generoso,
que compreende que este está mais para a narrativa marcada e caricata dos games,
da ética da “vitória poética” – em oposição a conseqüências reais – que marca
a cultura em torno de romances fantásticos e jogos online, da estética da repetição
dos games e do vídeo na internet, da natureza meio autista que tem parte da cultura
pop tecnológica. É um filme infanto-juvenil, mas isto não é necessariamente um
defeito. Outubro de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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