Bem Amadas (Les Bien Aimés),
de Christophe Honoré (França,2011)

por Filipe Furtado

Um vampiro no museu

Bem Amadas é a história de uma mãe e sua filha, dos anos 60 até a década atual, complicada pelo ressentimento da filha com a ocupação frequente da mãe. Some a isso todas as dores de cabeça provocadas pelos vários homens na vida das duas e seria material mais do que suficiente para um bom filme por si só. Mas Christophe Honoré precisa transformar o filme também num painel histórico e outra “homenagem ao cinema francês”. Desde Martin Scorsese, não há um cineasta com uma relação tão doentia com a história do cinema quanto Honoré. Nos seus melhores momentos, essa obsessão ajuda a construir um universo elaborado muito particular de relações (geralmente familiares) desajustadas; no seu pior, ela se torna o principal elemento deste mesmo universo e dilui qualquer força que ele seja capaz de expressar.

Bem Amadas é um filme calculado como um retorno ao momento de triunfo de Honoré (Em Paris, Canções de Amor), após um par de seus filmes (Não, Minha Filha, Você Não Irá Dançar e Homem no Banho), que buscavam um intimismo maior, receberem pouca atenção. Logo, não surpreende que seja também um filme que intensifique os piores elementos dos seus sucessos anteriores, em particular justamente o uso que faz da história do cinema e de uma tentativa forçada de assumir para si uma espécie de manto de herdeiro da Nouvelle Vague (algo que existia muito mais no discurso crítico sobre Em Paris do que no filme, em si muito mais próximo de Salinger do que de Truffaut).

A sequência inicial não poderia ser mais honesta: ao som de uma versão de “These Boots are Made for Walkin’”, Ludvigne Seigner pega um par de sapatos da loja em que trabalha e, no retorno para casa, é confundida com uma prostituta. Está lá o gosto pela superfície, pelo artifício, a nostalgia fácil do filme de época pontuada com um mínimo de perigo já devidamente amortizado pela referência a Demy.  Sobretudo, o que os momentos iniciais de Bem Amadas nos deixam claro é a paixão do filme por significantes: cada elemento de cena, cada ator, tudo ao longo das quase duas horas e meia de Bem Amadas grita que tem seu valor, embora quase nada se imponha diante de nós.

Sugerir algo é bem mais importante aqui do que realmente ressoar junto ao espectador, e o trabalho do diretor passa a ser basicamente o de preencher a cena com ornamentos que disfarcem sua própria insignificância. Logo, a inevitável presença constante da história e do cinema são ambas devidamente vampirizadas para o jogo fútil que o filme propõe. Se há algo torpe nos joguetes propostos por Honoré é justamente a forma como estes elementos são inseridos no filme para emprestar-lhe força. Não seria um problema em si se Bem Amadas soubesse o que fazer com esses elementos, mas eles seguem dispersos e desarticulados ao longo do filme - resultando, por exemplo, numa das versões menos autênticas da Primavera de Praga já colocadas num filme.Bem Amadas faz uso constante desses dados como verniz, mas os insere invariavelmente dentro da chave agridoce buscada por Honoré para enobrecer a ação. A Primavera de Praga, a AIDS, o 11 de Setembro são todos apenas dados a mais, equivalentes a qualquer citação de Nouvelle Vague que o filme lança mão.

Muito mais que seus filmes anteriores, Bem Amadas sugere que Christophe Honoré tomou para si a posição de mediador de uma herança do cinema francês para as plateias atuais. A diferença entre Lola e Amelie Poulain é muito mais tênue que os apreciadores da primeira gostariam, e Bem Amadas se dedica a tentar igualar as duas numa só. A relação parasitária do filme com o cinema francês existe todo em função a levá-lo para o museu, retirar da Nouvelle Vague qualquer risco e experimentação que estes filmes apresentassem e devolver-lhes somente um tom ao mesmo tempo fofo e esperto. Há melancolia nas personagens de Honoré, sem duvidas, mas longe daquela vista, por exemplo, no Lola de Demy. É uma melancolia protocolar, pois as imagens de Bem Amadas fazem questão de nos garantir de que não há risco de Ludvigne Seigner terminar sozinha numa model shop de Los Angeles como Anouk Aimee nos filmes de Demy (se um personagem de Honoré emigrasse à America, sem dúvidas, seria pelo viés da ascensão social).

Bem Amadas é um filme acadêmico, calculado para amortizar sua própria dor. Não surpreende que o único elemento que insere alguma vida nos procedimentos seja a presença de Milos Forman (cujo casting, é bom dizer, é só mais uma citação entre tantas), um não-ator, cuja naturalidade amadora não permite que ele exista só como mais um objeto de cena. Nas suas poucas cenas, há uma energia genuína que pulsa na relação entre os personagens que logo se dissipa nas sequências posteriores, quando o filme retoma o seu jogo. O interesse de Bem Amadas, afinal, é o de pegar filmes muito melhores do que ele e garantir ao seu espectador que a experiência deles não poderia ser mais indolor.

Agosto de 2012

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta