Belair, de Bruno Safadi e Noa Bressane (Brasil, 2009)
por Eduardo Valente

Cinema de paixão, paixão de cinema

Belair é um filme apaixonado pelo seu objeto. Só que, ao contrário do que se poderia pensar quando sabemos que entre os seus dois diretores temos uma das filhas de Julio Bressane e o seu assistente nos filmes mais recentes, este objeto não é exatamente a  carreira do cineasta nem mais especificamente o momento da carreira em que ele trabalhou em parceria com Rogério Sganzerla (de quem, aliás, uma das filhas é também assistente de direção do documentário) na produtora que dá título ao filme. Este objeto é antes de tudo o cinema, ou mais especificamente o fascínio e a potência criativa e recriadora do mundo que as imagens em movimento têm a capacidade de concentrar. Que os filmes pelos quais eles se tenham movido neste trabalho sejam dos pais ou pessoas muito próximas é muito pouco importante para tudo que de mais forte Belair consegue realizar – tanto que não veremos aqui nenhuma das narrações em off ou presenças em cena dos realizadores como parte do espetáculo, fazendo da sua subjetividade uma estrela em cena. A estrela, aqui, é o cinema – e, mais particularmente, os sete filmes realizados em quatro meses pela produtora Belair.

Isso pode ser visto, acima de tudo, na maneira como Belair opta por usar as imagens dos filmes originais: ao contrário do uso corrente de filmes com teor historicizante ou de “resgate”, as imagens dos filmes não entram aqui para ilustrar determinadas circunstâncias ou informações que os cineastas desejem passar. Como elas são o motivo principal de tudo que move o filme, as imagens surgem com a força de uma reencarnação, e a elas é dado um enorme tempo de projeção, tempo este que muitas vezes respeita a longa duração dos planos nos filmes originais. É como se Noa Bressane e Bruno Safadi nos dissessem que para entender qualquer tipo de coisa sobre a Belair e seus criadores o importante mesmo seja parar para ver o que eles fizeram, num ato mais que generoso de delegação do seu próprio filme a estas matrizes ainda muito pouco conhecidas do espectador, e que tanto os (co)movem.

Não que Belair se resuma a fazer um compêndio de cenas dos filmes de Julio Bressane e Rogério Sganzerla (e Helena Ignez, e Maria Gladys, e Elyseu Visconti, e Renato Laclete... – o filme deixa claro a força da idéia de grupo entre eles). Muito pelo contrário, os dois diretores dialogam com este trabalho de uma maneira bastante frontal e de peito aberto desde, literalmente, o primeiro plano do filme, que retoma aquela que é considerada a primeira imagem cinematográfica realizada no Brasil, da entrada da Baía de Guanabara. O gesto de refazer um primeiro plano há muito perdido em 2009 é recheado de significados possíveis, que não convém de forma alguma tentar esgotar aqui, mas que se relaciona de uma forma extremamente concisa com o desejo que movia os cineastas da Belair. Há neste gesto ao mesmo tempo uma irresponsabilidade e uma ambição desmedidas, balizadas por um respeito profundo pelo que veio antes, pela dimensão da memória da qual o filme fala seguidas vezes. Não por acaso, os corredores e a sala de exibição da Cinemateca do MAM se configuram num outro personagem do filme: por um lado, a sala é lugar onde parte importante da história do cinema brasileiro foi feita e que volta a ser habitada literalmente pelos filmes da Belair; por outro, os corredores com suas torres de latas de filmes nos lembram fantasmagoricamente que ali a memória deste cinema é guardada, mas também perdida, dia após dia (e o uso das pontas pretas e brancas no momento de falar de Carnaval na Lama é fortíssimo neste sentido).

No entanto, em meio às tantas imagens fortes que Belair cria ou que reproduz, nenhuma é mais emocionante do que o momento quando, através de uma montagem de imagens e sons de tempo distantes (e muito mais poderia e deveria ser dito sobre o trabalho de articulação entre imagem e som no filme), o filme recria o ponto inicial da criação da Belair: um encontro entre Bressane e Sganzerla num quarto de hotel em Brasília. Ali há uma superposição de crenças no poder do cinema absolutamente acachapante: de um lado, a própria força que moveu os dois cineastas a se encontrarem artisticamente, que veio da experiência de conhecer os filmes um do outro; de outro lado, a utilização das ferramentas fundamentais da linguagem do cinema para confrontar e superar todas as barreiras do tempo e mesmo dos limites da existência (ou seja, a morte). Se inegavelmente Belair nos fala de coisas muito duras sobre a história do Brasil e do nosso cinema, ali naquele momento está resumido o quanto o filme aposta na capacidade de suplantar tudo através do gesto criador, da arte. É isso, no fundo, o que o filme deseja nos dizer sobre os poderes do cinema, e especificamente destes sete filmes incomuns que foram feitos naqueles quatro meses de 1970.

Outubro de 2009

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