eletrônica Regressões
"sádicas" por Luiz Soares Júnior
Uma
das coisas que mais me tem intrigado nesse BBB8 é uma espécie de regressão emocional,
paralela à “sofisticação” dos mecanismos de controle e intervenção do Grande Irmão,
capitaneado por um Boninho no auge de sua vontade de potência. Isso porque, ao
contrário do que se poderia esperar a esta altura, os personagens do jogo mostram
um auto-controle emocional e senso de estratégia comparável ao tatibitati culpado
e histérico da primeira edição. Ninguém aprendeu nada ou fomos nós que, de tão
embotados, não acompanhamos este movimento muito sutil e rasteiro que caracteriza
toda tática de guerra: a dissimulação das emoções individuais sob um arsenal calculado
e preciso de emoções mais estereotipadas, identificáveis, gerais?
Em
todo paredão, por exemplo, temos a encenação de um luto. Luto de proporções trágicas
mesmo, como se os habitantes da casa fossem, não seres munidos de responsabilidade
moral e consciência, mas joguetes de algum deus ex-machina, habitantes
de uma ilha que qualquer ciclone tropical vem displicente e sensualmente lamber,
para glória do mito pagão. Estarão eles tão refinados no trato do próprio ser,
na representação do papel/persona que se esqueceram de que estão fingindo? E a
máscara colou na cara? Não
quero levar a divagação psicanalítica até o grau do imponderável, onde ela se
anula e sugere o absurdo. Prefiro ficar no raso mesmo, neste terceiro olho que
é a câmera, esta mediação institucional entre a demonstração clara e distinta
cartesiana e a intuição “à flor da pele”, enigmático buraco da fechadura por onde
nos é dado a ver não apenas o que o olho vê, mas o seu reflexo invertido e revelador.
O que nos é dado a ver é que o Big Brother possivelmente chegou a um tal grau
de repetição, de degradação das possibilidades de encenação e travesti, de dinamicidade
reversível (e até certo ponto saudável) da imagem que não temos nenhuma outra
alternativa além da que nos foi dada a ver na primeira edição. E
o que víamos naquela primeira edição? Personagens planos, achatados, o arquétipo
do estereótipo como garantia de um controle disciplinar que permitia que o cotidiano
das pessoas pudesse ser modelado e orientado pela edição. A diferença é que, agora,
a edição não basta. O olho do Grande Irmão é cada vez mais certeiro, diretivo,
as mil e uma regras sub-reptícias da manipulação agora se fazem claras: não apenas
se pode acusar este Big Brother de induzir o público por meio da edição, como
o formato do programa e suas inovações assumiram a manipulação panóptica como
um princípio formal, absoluto da coisa. Assim, Boninho inventa um telefone-surpresa,
armadilhas, mecanismos explícitos para alimentar a dissensão entre os confinados,
acirra a divisão entre os grupos, diversifica os tipos e formas de interação dos
grupos, diversos grupos, grupos destacados para um combate na selva. Em
contrapartida, o que temos? Reações e atitudes que mostram uma total inadaptação
dos personagens à guerra que o programa sempre foi, mas cuja plenitude homicida
só é assumida agora, talvez nos estertores de sua vitalidade. A impressão que
me dá é que há concorrência entre duas formas de encenação, de farsa: a da Globo
e o mecanismo de auto-indulgência e projeção dos “atores” do programa, que
imagem eles querem passar para eles mesmos e para nós. Ou que imagem eles podem
passar, dada a relativa estreiteza de uma margem de manobra exercida pelo grupo
na atual fase “barra pesada” do programa. Máscara
da máscara? Refúgio no sentimentalismo mais grosseiro como estratégia-mor de sobrevivência
pública? Ou puro e simples esgotamento das possibilidades que todo espaço relativamente
concentracionista permite aflorar: diversidade das interações, flexibilidades
dos papéis assumidos, “jogabilidade” e maleabilidade necessárias a toda e qualquer
convivência grupal, além do mais em tais condições radicais? Será que a selva
delimitada que é o Big Brother não consegue mais o prodígio de induzir as pessoas
a praticar o ambíguo exercício da esquizofrenia criativa, do deslocamento constante,
da despersonalização, da dispersividade rizomática? Estarão todos fixados de antemão
no tabuleiro chinfrim da novela das 6, como parecia indicar o primeiro programa? Os
brothers nesta edição, com sua apatia e reações mais do que estereotipadas, me
parecem aqueles personagens das comédias chatíssimas do nosso amiguinho Marquês
de Sade, em que as pobres criaturas vivas – falo das vítimas, é claro – não demonstravam
o menor sinal de que estivessem realmente vivas, e se contentassem em encenar
os rituais de imolação dos bichos: gritos, lágrimas, excrementos. Não há vida
espiritual, humana nos torturados de Sade, eles são objetos para o prazer dos
senhores, estes sim entidades autônomas, dotadas de vida interior. Sade abole
a moral não por enaltecer a vontade de potência dos nobres intelectuais, mas por
negar consistência psicológica e verossimilhança às vítimas; elas são elementos
de um teorema. Se vivem e nos comovem, é como animais, na
hora da dor ou do prazer (dos outros: nós punheteiros de plantão), e não por um
traço de caráter, uma idiossincracia que as delimite em relação às outras. E os
sádicos, em compensação, multiplicam os prodígios de horror, embora tenham a certeza
que a única resposta que possam esperar daqueles ‘animais” serão urros,
gritos de dor, lágrimas. Ou melhor: repetem os horrores para magnificar esta certeza,
para santificá-la: eles são coisas, nós homens. As vítimas não falam, não tomam
a iniciativa da linguagem. Permanecem reféns do corpo escravizado, reativo, objeto.
Quem detém a palavra são os carrascos, encarnados agora em nossos controles remotos,
nos vídeos do You Yube ou na tática de guerrilha usada por Boninho: nossa renovada
fruição sádica é ver os joguetes desta triste farsa repetirem seus opróbrios de
autômatos espirituais até o limite de “nosso” saciamento – ou cansaço.
Fevereiro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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