admirável mundo novo
Dramaturgia do constrangimento: os novos "barrados do BBB"
por Ilana Feldman

Parte 1: Renovadas estratégias de poder

No último dia 9 de janeiro teve início a sétima edição do BBB. Já é o sétimo ano de uma tradição: todo mês de janeiro, estréia uma nova versão do programa. Porém, de modo diverso dos anos anteriores, neste dia 9 ocorreu algo de diferente durante a apresentação dos personagens: os vídeos dos candidatos não-selecionados, identificados pela produção do programa como os “barrados”, não foram exibidos, não apareceram editados; nem mesmo, aliás, os vídeos dos próprios selecionados foram veiculados, seja lá porque parte dos participantes não foi selecionada de fato (o que não é aqui uma questão), seja lá porque os materiais não interessavam.

Assim, ineditamente barrou-se do produto final os vídeos dos “barrados”. Barrados das festas, da fama, do hedonismo programado, da inserção pelo consumo de alto-padrão e do confinamento roteirizado e controlado; mas barrados, sobretudo, do “padrão de qualidade” reivindicado pelas Organizações Globo. No lugar então da “autenticidade” e “espontaneidade” primevas, reveladas por vídeos cujas imagens são frágeis, inadequadas ou precárias, assistimos a trechos da última entrevista do processo seletivo – chamada pela produção do programa de “cadeira elétrica”. Tipo de entrevista de “emprego”, cuja voz do entrevistador, Boninho, diretor e instância onividente do programa, foi, pela primeira vez, posta em cena.

O que teria levado a decisão de não mostrar trechos dos vídeos dos “barrados”? Seria uma decisão moral – já que este procedimento tem sido muito criticado por analistas de televisão e críticos, como exposição constrangedora da precariedade estética, econômica e subjetiva dos candidatos – ou uma decisão comercial – já que este procedimento estaria desgastado e o BBB está sempre fazendo upgrades em seu formato? Em realidade, não importam as justificativas, até porque as duas hipóteses poderiam ser pertinentes. Antes, o que nos interessa são os efeitos produzidos a partir de tal decisão, que só é relevante na medida em que implica que o constrangimento – produzido pela forma paródica de exibição dos vídeos e pelo conteúdo “inadequado” e dissonante daquelas imagens – foi jogado para “debaixo do tapete”, varrido do horário nobre e relegado para outro canal de exibição, por certo não menos importante: o site do programa.

Assim, no âmbito do programa veiculado na TV, a possibilidade da diferença foi eliminada e a insubordinação controlada – certamente não em nome do respeito àquela alteridade que implora para deixar de sê-lo, mas em nome de um efeito asséptico, espécie de higienização e purificação da imagem. Pois se as dissonâncias provocam o riso, servindo aos efeitos cômicos e paródicos, elas também incomodam por sua dimensão excessiva, incontrolável e incontornável: excesso de produção subjetiva, excesso de uma carnalidade viva. Não por acaso, justo este ano a modalidade que permitia que dois candidatos, sempre destoantes do padrão, entrassem “pelo telefone” (via sorteio e não via processo seletivo) foi descartada: o atual elenco nunca foi tão homogêneo nos critérios de redução da faixa etária, incremento da “boa aparência” e estabilização da renda. Assim, enquanto suprime-se o incômodo no bojo do programa, alimenta-se seu análogo no âmbito do site, que apresenta, em meios às imagens dos personagens inseridos na casa, os vídeos daqueles excluídos – não na competição, mas da própria possibilidade de competição. No site, os limites morais são tão mais esgarçados quanto menor é qualquer tipo de auto-censura.

A convivência entre esses dois estatutos de imagens em movimento merece nossa atenção, pois torna o site do BBB um objeto ainda mais instigante, quando não desconcertante, seja pela presença dos vídeos, seja pela extrema transparência das estratégias de visibilidade e marketing, ou seja por uma “obscena” ausência de limites, éticos e tecnológicos, já que o site aspira ao ideário (que já está sendo posto em prática) de uma convergência tecnológica total. Sendo assim, a análise aqui proposta não tentará dar conta do site (por demais amplo) mas das dinâmicas relativas aos usos dos vídeos dos “barrados”, em suas apropriações e ressignificações.

Imagens amadoras

A exibição e circulação do audiovisual na internet têm sido marcadas por uma nova dinâmica cultural. Pautada pelo gesto amador, pela hegemônica precariedade das formas e por narrativas do cotidiano – a partir das quais o caráter ordinário da experiência e dos espaços é revelado -, essa dinâmica vai, pouco a pouco, contaminando viralmente todo tipo de espaços virtuais: dos realmente amadores (ou daqueles que aglutinam tal pecha) aos institucionais. Nesse sentido, é possível perceber uma linha direta entre os vídeos dos candidatos rejeitados na seleção do Big Brother Brasil 7, os “barrados do BBB” (disponíveis on line) e a proposta amadora do Youtube – por vezes marcada pela chacota, pela paródia e por construções que se pretendem erotizantes (quando não também paródicas).

Para além do compartilhado caráter amador, que confere às produções uma pleiteada impressão-de-autenticidade, há uma diferença fundamental entre as duas instâncias citadas. O Youtube é um canal polimorfo – e bastante complexo – de interação e veiculação do audiovisual na internet. Comporta de tudo – inclusive, na condição de um arquivo digital da produção televisiva, cenas de Big Brothers anteriores, vídeos roubados dos “barrados” e outros deliberadamente, e parodicamente, construídos como tais. Tudo embalado por um espírito zombeteiro, quando não sarcástico, por parte de quem disponibiliza os materiais.

Porém, se um mesmo material disponível no Youtube é veiculado pelo site do BBB (ou vice-versa) seu sentido é radicalmente alterado. Isto porque, no site do BBB, de modo diverso do Youtube, as relações de poder são de outra ordem: partem de um desequilíbrio e de uma polarização radical, e não mais de uma premissa de ramificação dos poderes própria à proposta de interação. O que significa que o constrangimento – proporcionado pela exibição dos vídeos no site do BBB e tomado aqui como uma estratégia dramatúrgica, e não como uma categoria subjetiva apenas -, produz efeitos, e sentidos, radicalmente distintos do que seus similares disponíveis no Youtube.

Diferentemente da maior parte dos vídeos que se encontram no portal Globo.com, acessíveis somente por meio de assinatura paga, os vídeos dos “barrados” são de acesso livre. É carne de vaca, xepa de feira, de graça. Sua lucratividade está no fato de que este agraciamento é um chamariz para que o espectador do BBB seja assinante do portal e, com isso, tenha acesso exclusivo, e pago, a cinco câmeras que estão sendo transmitidas durante 24 horas por dia no período em que for exibido o BBB7 – que terá seu fim em março. O que, na prática, significa que enquanto se paga para exercer a vigilância ao vivo, ganha-se como brinde a cumplicidade de um novo tipo de humilhação.

Tal situação indica que estamos diante da radicalização de um “novo” tipo de poder, já postulado por Michel Foucault nos idos dos anos 70. Agora, além de microfísico, capilar, infinitesimal e produtivo, o poder seduz, solicita e convoca nossa ativa colaboração – capciosamente vendida muitas vezes sob o nome de “interação”. Um poder em nome do qual nos voluntariamos a “espiar” e, através do qual, nos tornamos cúmplices e testemunhas operantes. Um poder, enfim, para ser exercido “amadorísticamente”.

leia também a parte 2: Dramaturgia do constrangimento, parte 2: uma análise dos vídeos dos barrados do BBB.

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