in loco - cobertura dos festivais

Bamako (idem), de Abderrahmane Sissako
(Mali/França, 2006)
por Lila Foster

Utopia e/é política

O filme abre com um plano aberto de um homem andando pelas ruas de Bamako, capital do Mali. Corta para o plano próximo do rosto de Méle cantando em um bar. Logo veremos que ela é uma mãe de família que volta para casa para encontrar a sua filha com febre e o seu marido Chaka vivendo a angústia do desemprego. A situação familiar parece instaurar o filme na esfera privada, mas, na manhã seguinte, o que vemos é o quintal da família transformado em um tribunal à céu aberto. Não existe clareza do que se trata ali inicialmente, porque esta junção do espaço público com o espaço privado é posta em cena de forma extremamente natural: Chaka pede para o guarda amarrar sua roupa, crianças andam entre os advogados e uma tecelã tinge os seus panos atrás dos juízes.

Aos poucos, porém, se percebe que o julgamento em questão é o do povo do Mali contra os representantes do Banco Mundial, do G-8 e do FMI. E a situação, que poderia ser considerada fantasiosa por princípio, se inverte diante das falas dos representantes da sociedade civil em defesa do povo de Mali – vigorosas, conscientes. Logo fica claro que absurda é a dominação e a arbitrariedade dos países desenvolvidos em relação a um continente que, segundo a fala de Aminata Traoré, não é pobre, mas sim, vive em franco processo de empobrecimento por ser vítima da sua riqueza. 

O filme assume essa postura muito corajosamente, pois as defesas permeiam todos os momentos mesmo quando o que está diante dos olhos é a observação do cotidiano – observação essa que se dá em um estilo muito próximo daquele de A Vida Sobre a Terra, filme de Sissako já lançado no Brasil. Naquele filme, o último dia de 1999, considerado como algo extraordinário na época, segue sem grandes mudanças ou transformações no cotidiano de um vilarejo. Pois em Bamako também existe algo de extraordinário: existe um tempo dedicado para a escuta por parte daqueles que estão em volta trabalhando ou esperando. A comunidade está atenta a este momento único de expressão de revolta e de discursos que alimentam a utopia de um desenvolvimento mais saudável, assim que o país estiver liberto do jugo dos países desenvolvidos.

A atenção inicial, no entanto, começa a se tornar cansaço e desconforto, instaurando uma contradição: as falas podem soar excessivas diante de um homem definhando na cama por falta de remédio, a manutenção material da vida, o trabalho, as escolas e os hospitais privatizados, os dilemas de um casal. Um ex-professor ao ser chamado para depor se cala e vira as costas para o palco ali armado. Mas, se a contradição se instaura nunca é para desvalorizar a utopia. A imagem, a linguagem não torna isso possível porque, assim como o privado e o público estão colados, quase indistintos, o sonho não pode prescindir da dor e sofrimento causados pelas dificuldades de sobrevivência.

Assim, o lamento de Samba Diatiké, homem de um vilarejo que está ali para falar diante do tribunal por uma necessidade quase física, emociona pela tristeza mas também pela força e dignidade conferida a luta por mudanças. E, quando o filme termina tragicamente, o que fica não é somente a inevitabilidade de mudança ou o desespero diante do que parece intransformável. Se o sentido da ação política se vê muito desgastado, e os filmes muito frequentemente absorvem isso deixando os personagens e o espectador diante de um mundo sem saída, Bamako opera de uma outra forma. Apesar da barbárie, existe o poder adquirido pela afirmação e pela não-aceitação, mesmo que simbólica, de que a lógica da ordem econômica imposta seja natural. A utopia não se apaga com o sofrimento – ao contrário, ela deve se alimentar dele.

Outubro de 2007

editoria@revistacinetica.com.br

« Volta