in loco
Um balanço de Brasília
por Cléber Eduardo

Feito o exercício da cobertura diária, fica a pergunta: o que foi Brasília 2006? Certamente, não foi o melhor do cinema brasileiro finalizado em 2006, já que, em setembro, um grande número de filmes prontos (das mais diferentes qualidades mas com uma média inegavelmente alta) estrearam no Festival do Rio – sendo exibidos, na seqüência, na Mostra Internacional de São Paulo. Como Brasília exige ineditismo, de modo a se firmar como plataforma de lançamentos e obter maior visibilidade na mídia, muitos títulos ficaram de fora. É por isso que não podemos ver os seis longas selecionados como uma amostragem do melhor da atualidade - porque, para fazer isso, seria necessário reunir outras longas, como Serras da Desordem, de Andrea Tonacci (exibido em Tiradentes e premiado em Gramado); O Céu de Suely, de Karim Ainouz (ganhador do Festival do Rio), O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger (prêmio de público no Rio e em Mostra de São Paulo); Antônia, de Tata Amaral (também premiado pelo público em São Paulo), Os 12 Trabalhos, de Ricardo Elias, e o documentário Atos dos Homens, de Kiko Goifman.

É fato que festivais de cinema precisam se firmar, sim, como plataformas de lançamento, de modo a fixar sua importância – ainda que a relação que Brasília estabeleceu neste sentido também com os curtas seja no mínimo polêmica, como discutimos aqui. Mas, o que a lista acima comprova é que, inegavelmente, dentro do atual panorama Brasília tornou-se segunda opção para a maioria dos cineastas. Por razões variadas, eles optam por não segurar o filme para o Festival, seja pela agenda de seus lançamentos em circuitos, seja porque consideram os eventos do Rio e de São Paulo de maior apelo para uma pré-estréia. Essa preferência desloca Brasília para um palco coadjuvante, sem a presença da elite cinematográfica, ou ao menos disputado por apenas parte dela. Frente a esta constatação, o Festival de Brasília, como amostragem de temporada, mostra-se manco, deixando, então, a dúvida: seria a seleção de Brasília, diante da elite estética da temporada, um recorte secundário? Não caiamos nessa armadilha simplória: na programação de seis longas em competição no festival, pelo menos metade deles (O Baixio das Bestas, de Cláudio Assis; Querô, de Carlos Cortez; e O Evangelho de Zé Lins, de Vladimir Carvalho), mais o filme de encerramento (o documentário Hércules 56, de Silvio Da-Rin – leia a crítica), são importantes protagonistas desse 2006 – é importante anotar que não assisti o filme de abertura, O Romance do Vaqueiro Voador, de Manfredo Caldas.

Independente das diferenças de qualidade entre os seis competidores, é importante notar que todos possuem inconfundível recorte político: tanto nos documentários como nas ficções percebe-se uma reação dos realizadores a processos contra os quais seus filmes se colocam. Esteve na tela de Brasília a violência contra a mulher em um ambiente estagnado (O Baixio das Bestas), a condição desgarrada de crianças sem âncora na vida (Querô), as ruínas de um tempo histórico e de uma cultura em processo de apagamento (O Engenho de Zé Lins), o sacrifício e o efeito traumático de quem se rebela contra uma opressão de Estado (Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton), o processo de exclusão estimulado pela livre circulação da moeda no mundo (Encontro com Milton Santos ou a Globalização Vista do Lado de Cá, de Silvio Tendler) e a impregnância da cultura da violência na retórica de um adolescente de periferia (Jardim Ângela). Se nem todos são plenamente bem sucedidos em suas reações a essas situações, é apenas porque talvez não tenham encontrado a linguagem pela qual poderiam melhor responder à suas indignações. Mas todos, certamente, indignam-se.

Como se sabe, O Baixio das Bestas saiu com o prêmio principal. Em um momento no qual a linguagem de impacto tem sido a mais recorrente nas representações de situações de impacto (como em Quero), Cláudio Assis investiu em um olhar empenhado em se instalar nas cenas e nos espaços. Os planos querem ver, observar, sem tirar o olho, sem travelings velozes, sem cortes abruptos. Essa observação mais detida não está livre de uma composição formalista das seqüências (quase autônomas), o que, para muitos, foi uma escolha fetichista para se retratar circunstâncias pouco dadas a esteticismos. No entanto, essa tensão entre o que se mostra e como se mostra, entre a beleza da linguagem e a agressividade dos acontecimentos, em última instância, é a força do filme – sem deixar de ser também seu aspecto mais problematizável. Não se pode deixar de reconhecer que, assim como a passagem de Beto Brant entre O Invasor e Crime Delicado, Baixio das Bestas é uma escolha corajosa de seu diretor após Amarelo Manga, abandonando a linguagem mais empolgante daquele por uma radicalidade mais racional nesse. Perde-se em organicidade, ganha-se em reflexão interna, por dentro da linguagem, não apenas a partir dela.

Sem deixar de ter essa tensão entre forma e conteúdo, Batismo de Sangue, de Ratton, ganhador do prêmio de direção (em evidente estratégia matemática para não se deixar um tema nobre ficar de fora da festa), não possui a mesma força justamente por não pensar sua estética. Se a encenação ilustrativa e pouco virulenta em nada potencializa as circunstâncias-limite situadas nos anos de chumbo, essa fuga da solução mais óbvia (a narrativa de impacto), ao invés de produzir as faíscas de Baixio das Bestas, apenas evidencia os artifícios da representação comprometida com a suspensão da descrença, deixando ver a escritura do roteiro na tela, e não os efeitos de sua existência audiovisual. Percebe-se o empenho para se produzir o ambiente 1968, da cenografia aos diálogos, mas não se respira esse momento histórico na sessão. Conota-se a época, alude-se, mas não se vive. Nem a entrega dos atores, cuja força para entrar nos papéis fica explícita demais, contorna o problema. Resta um tema, tratado de forma corajosa ao se colocar o dedo em feridas (a relação entre a confissão de um frei dominicano, em uma sessão de tortura, e o assassinato de Maringhela pelas forças da repressão), mas estruturado sem epicentro, sem um protagonista, opção essa diluidora da carga dramática. Cinema, mesmo quando o conteúdo é inflamável, sobrevive da forma: ela constrói e destrói os filmes. E, como que para compensar a anemia de sua forma, Batismo de Sangue (de maneira ainda a ser bastante discutida) apega-se demais em detalhes da tortura. Mas quem emprega a tortura em quem? Fleury nos dominicanos? Ou Ratton no espectador?

Querô se sustenta tanto sobre uma linguagem dinâmica e enérgica quanto em cima do elenco, que, embora uniforme no conjunto, tem como síntese de sua carnalidade e organicidade a figura de Maxwell Nascimento, jovem talento premiado como melhor ator, fazendo uma parceria no campo das revelações com Mariah Teixeira (prêmio de atriz por Baixio das Bestas). O filme tem ainda o mérito de ser uma adaptação atípica de Plínio Marcos, sem a marca do confinamento de suas outras peças levadas ao cinema. Paulo Sacramento, o responsável pela montagem agressiva em sua fluência, mais que merecia, se o júri abrisse mão de diplomacias, levar o prêmio por sua atividade. Mas o Candango, como que para tornar mais espessa a presença de O Engenho de Zé Lins, mudou o prêmio de endereço. É compreensível que se queira, pela qualidade do documentário de Vladimir Carvalho, torná-lo evidente na premiação (na qual levou o prêmio especial de júri, também conhecido como “consolação de luxo”). Mas um prêmio de direção, no lugar do de Ratton, seria mais honesto. E ousado: porque se ainda há quem questione o conceito de direção em documentários (tanto que ainda se premia documentários apenas como melhor filme e montagem), Carvalho coloca essa restrição (já um tanto nebulosa) em crise com O Engenho. Muito dos méritos do filme nascem de opções de filmagem e não de soluções de montagem.

Na competição de curtas em 35mm (a de 16mm não pôde ser acompanhada, porque era realizada no horário dos debates sobre crítica), apenas quatro selecionados entre os 12 competidores, tinham força para prêmios: Trecho, dos mineiros Helvécio Marins Jr e Clarrisa Camponila; O Homem-Livro, da carioca Anna Azevedo; Noite de Sexta, Manhã de Sábado, do pernambucano Kleber Medonça Filho; e O Brilho dos Meus Olhos, do carioca Allan Ribeiro. Mostrando olhares rigorosos e sensibilidade estética apurada, os jurados consagraram Trecho, premiando-o em categorias fundamentais: melhor curta, montagem e fotografia. Nada mais justo, diante de um fluxo poético pautado pelo deslocamento físico e entre texturas, que avança na narrativa sem parecer estar construindo uma. O Homem-Livro, exemplo de comunhão (a maior parte do tempo) entre personagem e filme, levou prêmio de direção (quebrando a regra que os longas não quebraram). Noite de Sexta, Manhã de Sábado, premiado na categoria de atriz (a ucraniana Bohdana Smyrnova, que só fala inglês no filme), ganhou ainda o prêmio da crítica (que, com a eleição entre os longas de Baixio da Besta, pareceu emitir um tipo de recado: “Os pernambucanos estão aí para ficar”). Para fechar melhor, apenas uma lembrança para O Brilho dos Meus Olhos seria justa, e estimulante para Allan Ribeiro. No geral, contudo, a premiação foi lúcida – e fácil: afinal, muitos dos filmes exibidos, se colocados lado a lado com o restante da produção no ano em outras seleções de festivais, tenderiam a ficar de fora.


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