in loco
Balanço de Cannes
por Eduardo Valente


Depois de uma semana de descanso, é bem mais fácil refletir sobre o Festival de Cannes, com um mínimo de distância – e é isso que tentarei fazer, a partir de algumas observações gerais. Terminei vendo em Paris, como planejado, Marie Antoinette e Il Caimano, que comento a seguir. E deixo ainda em separado minhas cotações para os filmes – já que, embora a Cinética não tenha um quadro de cotações (menos por não acreditar neles, mas por sentir que já há o suficiente em outros espaços), acho que numa cobertura rápida como esta, em que é impossível dar mais atenção aos filmes, pode ser uma maneira útil ao leitor de se relacionar com a experiência do crítico.

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Marie Antoinette, de Sofia Coppola (EUA, 2006)
Talvez o fato mais impressionante sobre o novo filme de Coppola é a sua inserção precisa no conjunto da obra da diretora (inclusive, como observou muito bem Kleber Mendonça, com ecos do episódio dirigido por papai Francis, mas escrito por ela, em Contos de NY). De novo, voltamos à história de uma adolescente que não consegue se encaixar, numa visão muito próxima da personagem. O filme é extremamente corajoso em assumir isso, e mais ainda investir numa infantilização da personagem (neste sentido é essencial a primeira frase de Maria Antonieta quando a carruagem que a leva para a França pára no caminho: o clássico “are we there yet?” que todas as crianças perguntam em viagens), marcando claramente seu espaço como filme “rito de passagem”. Também é corajosa sua opção de, num ambiente certamente cheio de significados sócio-históricos, apostar numa identificação com esta personagem inserida na parte menos “correta” da História.

Neste sentido, me parece tolo afirmar o filme como fútil ou como alienado – porque isso é parte essencial do projeto e da personagem. No entanto, mesmo com todo o interesse que tenho pelo filme, ele realmente é o menos em sucedido de todos os da diretora. Principalmente na primeira parte, onde uma incapacidade do filme em achar um ritmo e como filmar os ambientes onde ele se passa até pode ser visto, um tanto otimistamente, como um uso da metalinguagem para identificar uma dificuldade da personagem – mas certamente ultrapassa esta interpretação. Jason Schwartzmann, em especial, compõe um Luis XVI de uma nota só bastante incômodo. A partir do momento em que a personagem assume seu papel de outsider dentro daquele espaço, com o nascimento da filha, o filme ganha muito e consegue alguns momentos realmente precisos, que deixam entrever uma possibilidade de cinema que o resto não chega a dar. No fim das contas, nem obra-prima, nem decepção. Um filme que merece uma revisão posterior para ver se seus defeitos ou suas qualidades se mantêm melhores com o tempo.

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Il Caimano, de Nanni Moretti (Itália, 2006)

Desta vez, sou eu quem discorda frontalmente de Pedro Butcher: o novo filme de Nanni Moretti é um belíssimo filme - e mais que isso, muito difícil de se dar conta dele em poucas frases/palavras. Nem vou tentar, até por querer voltar a ele no futuro, com calma. Eu só começaria dizendo que para mim Moretti foi, dentre os autores do Festival, o que mais levou adiante o seu cinema com o seu novo filme. Na verdade ele é, como o de Almodóvar, uma volta revisitada a todo o cinema que Moretti fez até hoje, especialmente pungente na superposição das dimensões políticas e sociais dos seus personagens. Para além disso, o filme acha duas chaves brilhantes para não ser nem uma bobagem politicamente (à la Michael Moore) nem um panfleto esquerdista (à la Loach): primeiro, a do humor; depois, a do melodrama familiar. A maneira como Moretti vai trabalhar estes dois espaços simbólicos junto com o ataque frontal, porém hiper-significante ao governo Berlusconi, num filme lançado no calor do seu tempo e diante de uma eleição é nada menos do que impressionante. Dois toques de gênio: fazer do produtor, alienado politicamente, o seu herói (claro que o filme de Loach seria sobre a cineasta lésbica de esquerda), se aproveitando de um desempenho absolutamente magistral de Silvio Orlando nesse papel poético e quixotesco (perdão, Pedro, mas onde ele é ridicularizado??); e se colocar na pele de Berlusconi (de que forma ele faz isso, eu prefiro deixar para quando todos puderem ver o filme - a surpresa vale). Um filme a se voltar muito ainda, e que só reafirma Moretti como cineasta essencial que é.

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Competição

Com estes dois, dos 20 filmes em competição eu só não vi Selon Charlie, de Nicole Garcia. Embora esta ausência não chegue a ser a situação ideal, ainda assim acho que dá para brincar de, tanto tempo depois, dar as Palmas de Eduardo – que seguem no fim desta avaliação da competição. Foi uma competição curiosa esta, já que teve uma característica marcante de um determinado equilíbrio de recepção entre os filmes que oscilou entre uma satisfação quase geral (no sentido de que, na média, os filmes eram realmente interessantes) e uma certa decepção pelo simples fato de a imensa maioria deles, mesmo em suas qualidades, parecerem representar momentos menores e/ou repetitivos dentro das obras de seus autores – a maioria deles seguindo à risca o que se espera deles a esta altura. Esta sensação variou do mais bem aceito entre eles (Almodóvar, com certeza) aos mais discutidos (Kaurismaki ou Moretti, por exemplo - dos quais há desavenças se se repetiram ou refinaram); e dos mais experientes (Loach) a alguns mais jovens (Coppola, Ceylan, Iñarritu). Mas, não deixa de ser curioso notar que, dentro deste panorama geral, os filmes premiados são bastante representativos do ano: um Loach que só foi unânime com o júri, ou a repetição sete anos depois (bem notada pela Inrockuptibles) de prêmios já dados por Cannes mesmo (os de Dumont e Almodóvar).

Na seara das apostas da seleção, foi curioso notar como algumas das mais faladas acabaram dando com os burros n’água (principalmente Richard Kelly, menos pelo filme e mais por sua recepção, mas também Richard Linkater e Israel Adrián Caetano – embora este até tenha seus poucos fãs), enquanto algumas menos esperadas foram bem melhor recebidas (Andrea Arnold e Rachid Bouchareb, notadamente, mas também Guillermo Del Toro, Lucas Belvaux e até Xavier Giannoli). Mas o maior choque do Festival foi mesmo o filme de Pedro Costa, o que não deixa de ser curioso porque ele é um desenvolvimento muito lógico de carreira de um cineasta exibido na Un Certain Regard mais de dez anos atrás com seu segundo longa, Casa de Lava. Ainda assim, com seus detratores raivosos e seus fãs ardorosos, Juventude em Marcha certamente foi um dos momentos em que o Festival saiu do script – algo que aconteceu bem pouco este ano.

Dito tudo isso, fiz minha hipotética premiação (seguindo a lógica de não repetir prêmios principais entre os filmes). Informo que, para mim, premiação de filmes só faz sentido se for pensada para além de uma competição entre eles, já que acho bobagem pensar qual o melhor filme ou diretor entre obras distintas. Para mim existe um balanço buscado no conjunto dos prêmios e também uma relação com os filmes deste ano + história dos cineastas/artistas + significado adquirido por cada prêmio em Cannes + relação dos prêmios com o cinema e o mundo de hoje. Em suma, isso não é um ranking de filmes.

Palma de Ouro – Volver, de Pedro Almodóvar
Prêmio Especial do Júri – Juventude em Marcha, Pedro Costa
Direção – Guillermo Del Toro, El laberinto del fauno
Prêmio do Júri – Summer Palace, Lou Ye
Melhor Ator – Silvio Orlando, Il Caimano
Melhor Atriz – elenco feminino de Volver
Melhor Roteiro – La raison du plus faible, Lucas Belvaux

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Un Certain Regard

Thierry Fremeux deve estar um pouco preocupado com esta mostra para o ano que vem, porque claramente ela está perdendo muito do espaço de interesse fora da competição para a Quinzena dos Realizadores, que tem acertado muito mais nas suas apostas. De fato, a mostra paralela da seleção oficial deste ano não apresentou nenhum filme que, como com A morte do senhor Lazarescu no ano passado, causasse estranheza por não estar competindo (por outro lado, os fora de competição Election 2 e Bamako receberam este comentário). Talvez, apenas, o filme de Bellochio coubesse nesta categoria – mas com a atual onda conservadora na apreensão dos filmes da Competição pelos espectadores-mídia, talvez seja mesmo uma opção correta deixa-lo menos sob escrutínio e mais como descoberta.

De resto, o que vimos (com o adendo de que não vi um dos filmes que mais ganhou elogios – Ten canoes, do australiano Rolf de Heer; além de outros 3, que não causaram maior resposta) foi uma curiosa dualidade na curadoria: por um lado, filmes que apostam no over como forma de afirmar a autoralidade de seus realizadores (o húngaro Taxidermia, o australiano 2h37 – clone quase idiotizado de Elefante, o polonês Z Odzyscu, o australiano Suburban Mayhem; e, dentro da mesma idéia na chave da linguagem, uma oposição curiosa pode ser feita entre A scanner darkly e o paraguaio Hamaca paraguaya); por outro a placidez extrema, a fé num quase não-cinema, onde se encaixariam os franceses Bled Number One e Meurtrières, o cazaque Pour aller au ciel il faut mourir, o lituano You am I e o russo 977.

Na quase esquizofrênica sobreposição destes dois caminhos como formas de “vencer no mundo dos festivais”, porém, pouco restou porque os primeiros pareciam buscar o choque pelo choque, muito mais do que encontrar no seu radicalismo uma voz única e diferenciada; enquanto os segundos também não conseguiram construir, a partir da sua aparente negação da narratividade clássica, uma via com consistência. O resultado final foi uma seleção bastante pastosa e pouco memorável, onde mesmo os melhores momentos (o chinês Luxury Car ou o romeno Comment j’ai feté la fin du monde) passaram pouco notados. Como mais bem sucedidos, só mesmo Bellochio, na chave do cinema de autor, e o surpreendente Paris je t’aime, na sua relação com o público e superação das expectativas pouco altas.

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Seções paralelas (Quinzena e Semana)

Se a Un Certain Regard passou quase em branco, a seleção da Quinzena foi muito elogiada, e o seu curador (Olivier Père) apareceu como nome celebrado em muitas matérias de cobertura do Festival. Eu mesmo só acabei vendo 7 dos 23 filmes da seleção da Quinzena, por vários motivos (principalmente a distância da sala de exibição desta do Palais do Festival), mas fiz uma seleção criteriosa a partir do meu gosto, e posso confirmar que, de fato, Père arriscou bem mais que Fremeux (tanto na competição quanto na mostra paralela), e acertou bastante. Tanto que vários dos filmes aqui exibidos ganharam muitas coçadas de cabeça quanto a sua ausência na competição, indo desde o australiano mais “careta” Jindabyne (que não vi) ao contato com o cinema de gênero no coreano The Host, passando por autores de renome com filmes marcantes (Friedkin, Brisseau).

Fora isso, foi quase unânime a opinião de que a seleção francesa da Quinzena era não só muito melhor que a da UCR, como talvez mais interessante até que a da Competição – infelizmente eu não posso dizer, porque não vi nenhum deles além de Brisseau (eram Dans Paris, de Christophe Honoré; Ça Brûle, de Claire Simon; Changement d’Adresse, de Emmanuel Mouret; e Azur et Asmar, de Michel Ocelot – os outros dois filmes, Daft Punk’s Eletroma e On ne devrait pas exister, embora tenham recebido elogios, eram mais arriscados mesmo e não foram cogitados como competidores). Também receberam vários elogios o alemão Sommer 04, o italiano Anche libero va bene, o americano Day night day night (que vi nesta semana, e confesso achar apenas mediano), o espanhol Honor de cavalleria e o português Transe. Muito justo, neste sentido, que o ganhador da Camera D’Or, único prêmio que mistura as diferentes seções, tenha sido dado para um filme da Quinzena – mesmo tendo vários competidores na UCR e até mesmo um ganhador de prêmio da Competição.

Sobre a Semana da Crítica, eu pouco posso dizer, além da boa surpresa do brasileiro-americano Sonhos de Peixe, por não ter visto os outros seis filmes. Mas, nenhum deles chegou a causar mais discussões no Festival (ao contrário de outros anos, em que filmes como Amores Perros passaram nesta seção, e viraram grandes destaques).

 


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