Baixio das Bestas, de Cláudio
Assis (Brasil, 2006) por Cléber Eduardo
A "fenômeno-patologia" do pequeno poder
Há uma dúvida suscitada por Amarelo Manga,
estréia na direção de Cláudio Assis, que é parcialmente resolvida em Baixio
das Bestas. Até onde os comportamentos dos personagens do primeiro filme,
situados nas vizinhanças de uma mesma configuração social do Recife e condensados
em um espaço geográfico nuclear (uma pensão), são produtos das condições do meio
onde vivem? E por quais caminhos ali, se existe essa relação de causa e efeito,
o ambiente formata o indivíduo? A primeira resposta,
ao nos instalarmos em Baixio das Bestas, é claramente afirmativa. Se algumas
atitudes no longa de estréia poderiam soar patológicas, resultando em um desvio
coletivo de psiques, agora a relação homem/ambiente é mais direta. Parcialmente,
porém. Se em Amarelo Manga não há as razões, mas apenas os efeitos de um
contexto visualizado na aparência dos espaços e na atitude dos personagens, a
opção reflete o cinema brasileiro de hoje. Não tem interessado aos filmes voltados
para as conseqüências da estrutura social detectar ou denunciar os mecanismos
formadores da estrutura e de suas conseqüências. Importa somente como a “organização
social” interfere na vida do indivíduo, abrindo mão do entendimento da comunidade
em benefício da fenomenologia. Os problemas estão impregnados e naturalizados
nos espaços. Parecem não surgir de lugar nenhum: são parte da vida. A aproximação
com a desordem da sociedade se dá por alusão, pelo poder simbólico e sintetizador
das ações, mas não por uma operação demonstrativa. Baixio
das Bestas segue, parcialmente (insisto), um outro caminho. Em seu prólogo
em preto e branco, com imagens de torres de usinas desativadas e uma narração
sobre o fim de um ciclo histórico, há a disposição de partir da causa. Uma determinada
mudança na economia local está conectada com as experiências dos personagens.
Não apenas nessa introdução, mas em alguns diálogos, o filme nos induzirá a essa
relação. Embora isso o torne mais explicativo se comparado a Amarelo Manga,
a opção está muito distante do risco de uma sociologia amadora e tatibitati. Pelo
contrário. Se essa operação na introdução e nos diálogos nos induz a estabelecer
a relação entre personagens, ambiente e situação econômica, não haverá nenhuma
demonstração dessa relação na dramaturgia e, mais uma vez como em Amarelo Manga,
será por meio do sexo e da violência que a estrutura social irá manifestar a sua
linguagem: a da degradação da carne, menos pela prostituição tradicional, mais
pela agressividade com que, na relação com putas ou virgens, os homens agem com
os corpos femininos. Mas
como a mudança da economia local produz essa aberração? Não importa, na imagem
e na dramaturgia, para Cláudio Assis. Importa que, ao usar aquela introdução e
centrar o foco no atentado ao corpo, a relação se dá. Por indução, não demonstração.
Feita essa associação de cara, o filme se lança, agora sim de forma menos fenomenológica,
a um diagnóstico de sintomas. Cada personagem ali expressa em alguma medida aquele
ambiente. Pode ser o velho ao mesmo tempo explorador do corpo de uma ninfeta e
protetor de sua virgindade, a inocência brutalizada dessa garota e das prostitutas
empregadas em sessões de tortura pela turma de dois rapazes de classe média, que
são capazes de fazer qualquer coisa apenas porque sentem-se no direito de fazer
qualquer coisa. A soma dessas situações e desses personagens compõe um painel
local, caracterizado pelo uso da força e do poder contra o corpo, como faziam
os coronéis, latifundiários e senhores de engenho com seus escravos. Em suma,
como se via em Amarelo Manga, impera o imobilismo. Isso
não significa que, ao final, portas não se abram. O velho é atropelado em casa
pelo ritual fora de época do maracatu, a menina livra-se dele, o cinema onde os
rapazes de classe média faziam de tudo é fechado e o plano final termina com uma
chuva purificadora. Se durante a narrativa são recorrentes os diálogos sobre uma
fossa em construção, que ganha um sentido metafórico sobre a podridão daquele
espaço ou ao menos de alguns personagens, essas conclusões para os três núcleos
narrativos podem parecer libertadoras. No entanto, como não bastava para Dira
Paes pintar o cabelo no fim de Amarelo Manga, de modo a se libertar de
certa condição feminina, Baixio tem “fim em falso” (e não um fim falso).
Em Amarelo Manga, as imagens de rostos das pessoas na rua desmentiam a
potência transformadora do sorriso de Dira, como se, na mudança de cor de cabelo,
houvesse uma falsa saída, provisória e enganadora, que não teria como frutificar
em um ambiente de imobilismo. Esse mesmo gesto libertário de fachada, em outro
sentido, veremos no sorriso de Auxiliadora (Mariah Teixeira), a adolescente, quando
termina o filme em um bordel. Ela talvez esteja momentaneamente melhor, por ter
se livrado do velho (Everaldo Pontes), mas talvez logo seja usada em sessões de
tortura. Há mais ambuiguidades e paradoxos nesses dois longas
de Cláudio Assis, sobretudo em Baixio das Bestas, que suas imagens aparentemente
pensadas para chocar e testar limites podem nos evidenciar. Em uma das primeiras
seqüências, essa ambiguidade dá as cartas: o plano começa com a câmera no corpo
da adolescente seminua, com uma luz “artística” a iluminá-la na penumbra. Vemos
um recuo da lente até enquadrar o personagem de Caio Blat, Cícero, com uma expressão
de repúdio em relação à atitude do velho, mas de desejo pela menina. O plano termina,
sem corte desde o início, em uma cruz. Há nessa inserção no espaço uma série de
signos que, se não necessariamente são decodificáveis de maneira tão direta, produzem
uma atmosfera doentia, com uma naturalização entre os personagens, mas não pelo
filme, de situações ameaçadoras de qualquer noção de limite e regulação. Não
está falando apenas por si, mas também por Baixio das Bestas, quando Everardo
(Matheus Nachtergaele), olhando para a câmera em um cinema abandonado,
diz que, no cinema, em última instância, pode-se fazer tudo sem limites. Fala
por ele porque esse personagem, aparentemente, leu Nietzsche e Dostievski saltando
as páginas. Acha-se superior a todos, tem desprezo pela humanidade e, conseqüentemente,
exerce com sadismo sua superioridade. Não há lei para ele. É um perverso. Talvez
haja relações possíveis entre essa figura ficional e outras contemporâneas dela
em O Cheiro do Ralo e Cama de Gato, dois outros filmes nos quais
a perversidade dos protagonistas também está vinculada ao poder deles sobre suas
vítimas, criando uma espécie de universo sobre a patologia do poder e sua conseqüente
banalização da vida, que não tem a ver com o mal radical (nascido de ideologia)
e a banalização do mal (nascido da institucionalização), como analisados por Hanna
Arendt, mas com a reciclagem de conceitos do século XIX sobre os limites da ação
humana. Mas Everardo, além de falar por ele, fala pelo filme.
Não haveria uma mesma perversidade na permissividade de Cláudio Assis ao colocar
em imagens essa sua aparente denúncia? Nenhuma resposta aqui pode ser definitiva
ou conclusiva. Tomemos os aspectos mais complicados de Baixio das Bestas.
Um é o esforço quase exibicionista com que o diretor transforma seus espaços e
as experiências em massa de modelar. Está explícito o afastamento do realismo
e a procura por uma noção de tableau em movimento – não muito distante
das operações de mise-en-scène de um Jia Zhang Ke. O contraste entre luz
e sombras se faz notar, a elaboração da cena pela câmera em lentos avanços e recuos
evidenciam a construção cinematográfica, a seletividade na escolha dos lugares
onde se coloca a câmera é “notável”. Não seriam essas estetizações, sem caráter
pejorativo no uso do termo, atenuadoras da degradação? Não estariam procurando
beleza onde querem expor a sujeira e a feiúra? Por que dessa opção? O que interessa,
afinal, em Baixio das Bestas, são as experiências? Ou a maneira de olhar
para elas? Dependendo de quem estiver a responder essas questões,
teremos diferentes respostas e argumentos, assim como a revelação de diferentes
visões de cinema, diferentes critérios de se valorizar ou reprovar procedimentos.
Ao assumir o formalismo da imagem e da mise-en-scène, Cláudio Assis produz,
sim, um distanciamento em relação ao material e, também, um rompimento com os
códigos da representação justa da realidade. Sua justa representação daquele universo
é a justa representação de Cláudio Assis. Um mundo de Cláudio Assis. Ele é tanto
mais autêntico como “olhar” quanto mais for de Cláudio Assis, com toda sua tendência
para aliar repugnância à beleza, para extrair sua noção do artístico no pior de
um ser humano em determinado espaço. Cheguemos, para concluir,
às mulheres. Um número razoável de espectadoras tem reclamado, desde o Festival
de Brasília, de uma suposta misoginia de Baixio das Bestas. Não seria o
contrário? A misoginia é a repulsa masculina à imagem e ao contato físico com
as mulheres. Os homens do filme e o próprio filme poderiam ser perversos, por
não terem limites na relação com as mulheres, mas em nada se aproximam de uma
postura misógina. Se os personagens principais manifestam, por sua vez, desprezo
violento por figuras femininas, não se pode confundi-los com o próprio filme.
Até porque as mulheres, em Baixio das Bestas, são tratadas como vítimas,
sempre agredidas pelos signos masculinos de poder da região. No
entanto, além de terem o corpo violentado pelos homens, como quase um dado cultural
da Zona da Mata, elas são, para o filme e aos olhos dos espectadores, corpos em
exposição. A câmera é atenta a nudez das atrizes, faz questão de nos dar a ver
a beleza desses corpos, como se quisesse transformá-los em mercadoria para nosso
prazer visual, mas, na construção narrativa, essa valorização da beleza das formas
físicas, na verdade, potencializam a degradação dessa mesma beleza quando submetida
à opressão masculina. Sem falar que, na cena em que Auxiliadora, no riacho, banha-se
sem pressa, a beleza resiste à opressão, mesmo se apenas por um instante. editoria@revistacinetica.com.br
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