in loco
Internação portenha
por Julio Bezerra

Serge Daney já dizia: a cinefilia é uma espécie de enfermidade. Os festivais de cinema, por sua vez, são verdadeiras internações voluntárias. Entre setembro e outubro, cinéfilo brasileiro que se preste (e tenha disponibilidade para tal, claro) se aventura em uma ansiedade meio patológica entre Rio e São Paulo. Pois março também guarda uma certa tensão: é o Festival Internacional de Cine Independiente de Buenos Aires (Bafici) que se aproxima, em abril. Para aqueles mais obsessivos, que acompanham ano após ano o Festival do Rio e a Mostra de São Paulo, o Bafici é como um fantasma.

Dizem tratar-se de um dos melhores das Américas; um dos poucos festivais no mundo organizados social e intelectualmente em torno de princípios da crítica e da reflexão cinematográfica; um veículo propulsor para o novo cinema argentino; um presente para e da capital portenha. Criado em 1999, o Bafici é hoje internacionalmente reconhecido. Para se ter uma idéia, em 2005, quando o crítico e então diretor do festival, Eduardo Antin (o Quintín, fundador da famosa revista “El Amante”), foi despedido sem maiores explicações, correu pela internet uma petição em seu favor assinada por gente como Claire Denis, Jean-Michel Frodon, Olivier Assayas, Catherine Breillat, Hong Sang-soo, Jia Zhang-ke, Jonathan Rosenbaum e Mark Peranson. Pois, depois de algumas tentativas frustradas em anos anteriores, resolvi tirar o Bafici deste ano a limpo. Cinco dias apenas – foi o que minhas economias me permitiram. Mas foi o suficiente, no entanto, para esboçar algumas reflexões e ser completamente seduzido.

Em sua décima edição (do dia 8 ao dia 10 de abril), e com um orçamento de 3,5 milhões de pesos (3 milhões do Governo da Cidade de Buenos Aires e meio milhão do Instituto Nacional do Cine e do Audiovisual Argentino), o Bafici contou com 427 filmes, entre curtas e longa-metragens (sendo 60 argentinos) – e, curiosamente, o número de filmes diminuiu este ano. O evento se desmembra em cinemas do eixo comercial, tendo como sede um multiplex de 10 salas em um enorme shopping, e em espaços mais afinados com esse tipo de programação, como o Malba (Museo de Arte Latinoamericana de Buenos Aires). Os diversos acordos e patrocínios fazem do ingresso algo simbólico. Uma entrada inteira custa apenas 6 pesos argentinos (pouco mais de R$ 3).

Logo no primeiro contato com a programação, tem-se a impressão de estarmos diante do melhor que o cinema contemporâneo vem produzindo. Além de quase todos os destaques dos festivais de Rio e São Paulo, a curadoria do Bafici (o primeiro diretor do festival foi o cineasta Andrés Di Tella, depois vieram Quintin, Fernando Martín Peña, e, agora, Sérgio Wolf) recrutou filmes ainda inétidos por aqui como Tout est Pardonné (Mia Hansen Love), O Silêncio Antes de Bach (Pere Portabella), Profit motive and the whispering wind (John Gianvito), além dos novos de Olivier Assayas, Raya Martin, Shinji Ayoama,  Hong Sang-Soo, Jon Jost, Werner Herzog, entre outros. Além das mostras panorâmicas, o festival tem seis mostras competitivas (entre curtas e longas, argentinos e internacionais) e uma outra com onze filmes restaurados (entre eles, um John Huston, um Jacques Tourneur, um Charles Burnett, e um Josef Von Sternberg). O Bafici ainda investe pesado em retrospectivas paralelas – este ano foram ao todo 21 mostras retrospectivas, de Jacques Nolot, Nicolas Klotz e Roy Andersson a Michael Powell, passando por David Perlov, Ken Jacobs e Koji Wakamatsu.

Além dos muitos filmes, 40 atividades especiais foram programadas: 5 seminários, 13 master classes, 10 mesas redondas, 14 espetáculos de música ao vivo, 14 performances, e o lançamento de cinco livros. Aliás, o 10° Bafici edita quatro livros (um sobre os dez anos do festival, outro com fotos e textos sobre o belo filme En la Ciudad de Sylvia, um terceiro sobre o cinema moderno, de Ozu a Godard, e o quarto sobre o cinema de animação), vendidos ao preço de 20 pesos cada (cerca de R$ 12). Este ano, com a ajuda do Fondo Metropolitano de lãs Artes y las Ciencias e da Cinecolor Kodak, o Bafici ainda patrocinou a pós-produção de cinco filmes argentinos, além da produção de outros dois curtas. Bafici nos “dá a ver e ajuda a fazer”, explica Sérgio Wolf no catálogo deste generoso festival.

Apenas alguns problemas. De logística. Não há venda de entradas pela Internet. E as vendas antecipadas se deram até o primeiro dia do festival, dia 8 – ou seja, quando pisei em Buenos Aires, uma semana depois, mais de 40 mil ingressos já haviam sido vendidos e muitas sessões se encontravam esgotadas. Para piorar minha situação: espalhado por vários pontos da cidade, alguns distantes entre si, o Bafici pode se tornar um problema para os que não conhecem Buenos Aires. Não é que eu não tenha visto filmes – aliás, deixo minha recomendação expressa ao cinema do filipino Raya Martin e aos novos de Guy Maddin (My Winnipeg) e Ayoama (Sad Vacation). O fato é que, em se tratando de filmes, mais perdi do que vi. Em resumo: passei a maior parte do festival na porta dos cinemas. E não me arrependo.

O cinema é uma prática cultural orientada não somente por uma série de organizações internas às narrativas, como também externas a elas. O festival argentino é uma experiência única, por possibilitar o contato direto com um dos públicos cinéfilos mais sofisticados e críticos da América Latina. Na Argentina, por exemplo, não se entra atrasado no cinema e há sempre um baleiro no escurinho da sala. Os argentinos são incapazes de formar filas e sempre aplaudem quando o filme termina. O argentino é irônico, anedótico e esbanja uma aparência, à primeira vista, solene; ele pode ser extremamente simpático, mas dificilmente é terno – características que, aliás, estão presentes na própria crítica de cinema portenha.

O público do Bafici é eminentemente jovem, embora não seja difícil encontrar engravatados e moças de tailleur – além, é claro, da terceira idade. E no exercício de suas próprias cinefilias, instala-se um delicioso clima de companheirismo cinematográfico. Em meu primeiro festival não brasileiro, o que fica é esta certeza de estarmos ligados a algo que nos transcende, muito maior do que eu ou minha cinefilia. Afinal, somos todos “filhos do cinema” (para usar mais uma vez o francês Serge Daney), nos reconhecemos irmanados uns com os outros por uma paixão em comum.

O Bafici é um festival extremamente acolhedor, apesar de sua grandeza. Para evitar certos congestionamentos e alguns possíveis problemas no que concerne os formatos dos filmes e os projetores dos cinemas, a programação das salas é feita por um crítico inteligente (Javier Porta Fouz). Em cada estabelecimento, dois ou três estudantes de cinema orientam os presentes. Vez ou outra esbarramos em algum cineasta importante: estavam em Buenos Aires Jacques Nolot, Nicolas Klotz, José Luis Guerín, Ken Jacobs, Eduardo Coutinho, Carlos Reygadas, Koji Wakamatsu – Bela Tarr cancelou no último momento.

Mas o grande diferencial do Bafici é mesmo a curadoria – e é justamente neste aspecto que os festivais brasileiros ainda deixam um pouco a desejar. Na verdade, se formos realmente rigorosos, não existe a figura do curador e nem o conceito de curadoria na grande maioria dos grandes festivais de cinema no Brasil: em nossas maiores mostras, privilegia-se cada vez mais uma noção de “panorama do cinema”, um tanto inchada. Esta é uma discussão que ainda engatinha em terras tupiniquins, enquanto o Bafici (não somente no trabalho da curadoria, como também na programação das salas, nos debates e aulas marcados) é uma espécie de extensão do trabalho de crítica e de reflexão cinematográficas exercido por aqueles que comandam o festival.

O desafio de expor e fomentar a discussão sobre a produção audiovisual contemporânea parece ser encarado de frente pelos hermanos. A curadoria se esforça para colocar certos experimentos e apostas em um contexto mais amplo e investe pesado em uma espécie de curto-circuito temporal, onde o cenário contemporâneo é ampliado por filmes já consolidados na história do cinema. Assim, depois de um Gus Van Sant, um Abel Ferrara ou um Nicolas Klotz, pode-se ter contato com um John Huston, um Jacques Tourneur ou um Michael Powell. Ao invés de confundir as coordenadas, essa convivência de “cinemas” serve para colocar em perspectiva as preocupações de nosso tempo em relação às de outros.

Talvez o mais importante seja a preocupação da curadoria do festival em buscar uma certa transparência em seus critérios, e assumir a responsabilidade por suas escolhas. É definitivamente uma curadoria com assinatura. O catálogo do Bafici, por exemplo, vem acompanhado de uma série de pequenos textos, em que o curador se explica por alguns parágrafos sobre seus critérios para escolher uma certa composição de filmes. Dessa maneira, podemos ler Sergio Wolf sublinhando o interesse por filmes “pequenos” que tenham em seu horizonte uma preocupação com a linguagem, e reafirmando a tentativa de se projetar um quadro representativo do estado cinema argentino hoje. 

Não há também como não ressaltar as relações de afinidade entre o Baifici e o cinema argentino. Há uma sintomática coincidência entre o surgimento de uma geração de realizadores argentinos e a consolidação do festival. O 1º Bafici exibiu o segundo longa de Martin Rejtman, Silvia Prieto (ao lado), e Mundo Grua, filme que atraiu a atenção internacional para a carreira de Pablo Trapero, então estreante. Não que se trate exatamente de uma relação de causa e efeito: o que ocorre é a existência de dois fenômenos afinados que se apóiam e são úteis mutuamente.

O Bafici deste ano exibiu 60 produções nacionais, entre longas e curtas, e desencadeou uma discussão explosiva sobre a última década do cinema argentino. La mirada febril, de Rafael Filippelli, um documentário sobre os dez anos do festival, se pergunta se Mundo Grua não teria feito nada mais do que levantar uma onda eufórica de impressões sobre o futuro do cinema argentino que se mostrariam falsas nos anos seguintes. Em 2008, tivemos ainda um filme que andou colecionando elogios superlativos entre os críticos argentinos: Historias Extraordinarias, de Mariano Llinás. Em seu blog, Quintin afirma que somente o primeiro filme de Trapero havia despertando tanta euforia, enquanto Gustavo Noriega, da revista El Amante, sublinha que a décima edição do Bafici será sempre lembrada como aquela em que foi exibido o filme de mais de 4 horas de Llinás.

O 10° Bafici se orgulha também de ser sucesso de público. Para as 1001 sessões programadas, 167 mil ingressos foram vendidos (cerca de 63% a mais do que no ano passado). Além disso, 2500 catálogos foram vendidos e 25 mil pessoas participaram das 40 atividades paralelas, como seminários e mesas redondas. Na seleção internacional, ganhou o filme mexicano Intimidades de Shakespeare e Victor Hugo, de Yulene Olaizola (acima); na argentina, Unidad 25, de Alejo Hoijman. Mas o Bafici não termina com o fim do festival. O evento se desmembra em algumas mostras pós-festival espalhadas pela Argentina. A idéia, segundo Sérgio Wolf, é ainda investir no setor de distribuição. Em um discurso de encerramento, Wolf anunciou um projeto de autarquia para o festival a ser votado em 60 dias. Ele também revelou a criação de um conselho para a eleição de novos diretores a ser formado por todos os que já exerceram o cargo. Sem idealizações, é algo de dar inveja.

Maio de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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