sessão cinética
A Vida sobre a Terra (La vie sur terre),
de Abderrahmane Sissako (Mali/Mauritânia/França, 1998)
por Juliano Gomes

A Vida sobre a TerraUm filme no ar

Parte de uma série de filmes sobre a virada para o século XXI, A Vida sobre a Terra, assume diretamente a tarefa de fazer um filme sobre o tempo, sobre sua passagem. Abderrahmane Sissako arquiteta uma política temporal que desloca e complexifica a dimensão declaradamete anticolonialista do filme. Não é pela denúncia do estado arcaico de Sakolo, no Máli, que o grito silencioso de Sissako se torna um grande filme, mas sim pela maneira como o tempo é colocado em movimento pelo próprio, afirmando uma toada singular, particular, em contraponto a qualquer calendário que tente estabelecer uma suposta uniformidade do tempo. Há nesta narrativa uma força metalingüística que a multiplica ao invés de encerrá-la sobre si mesmo. O tempo se torna um tema pela maneira como o filme se estrutura como uma carta, uma mensagem de um país distante que pode não chegar, uma comunicação que pode não acontecer, como na maiorias dos telefonemas que vemos.

Um filme como uma carta ao vento, que pode ser encontrada ou não, que pode ser compreendida ou não. Uma coleção de painéis, de descrições da cidade em movimento, uma cartografia dos ritmos (muitas vezes há uma série de movimentos em sentidos diversos num mesmo plano, como caminhadas, bicicletas e ações ritmadas). Abderrahmane Sissako se concentra nos processos de transmissão para reconfigurar justamente essa idéia, para deslocar a comunicação para uma noção de presença e experiência. A única partilha possível no filme parece ser esta de habitar um tempo e um espaço comuns, de dividir com o outro um ritmo. O ritmo de A Vida sobre a Terra é o de uma reza, de um canto, ou um lamento, que não progride mas que segue em círculos, sujeito apenas a pequenas variações, e que quer assim apontar o limite de um pensamento que só pensa por progressão e evolução, como aquele no qual é baseado o nosso calendário.

A Vida sobre a TerraUma das formas de duplicação e comentário que o filme faz sobre si mesmo, ao optar por esta estrutura que tende mais à circularidade do que a uma linearidade, é o papel do rádio (as outras duas face desse processo de "dobra" seriam o aparecimento do diretor como personagem e a presença quase ininterrupta dos processos de comunicação no filme: telefone, carta, rádio). Um meio de uma fala que se dirige a todos e a ninguém, e que se baseia numa espécie de "promessa de comunicação", que se dirige a esse nada no qual deposita a razão de sua existência. O rádio é um ruído que ocupa os espaços e parece manter no ar esta "promessa de comunicação" (assim como a TV: sua presença, a simples audição de seu ruído, parece nos deixar menos sós), como que eternamente repetida, é algo que está sempre lá, "acontecendo", à espera de alguém que sintonize. Parece ser assim o filme de Sissako, uma obra de oscilações sobre o mesmo tema, sobre o mesmo espaço; uma onda, uma variação contínua que podemos sintonizar ou não, que parece nunca acabar ou terminar, mas sempre seguir, girando. E essa sintonia requer nossa atividade e nossa entrega.

Neste caminho, uma pedagogia se estabelece aqui: trata-se de um exercício de ressintonização do mundo e da nossa atenção como espectadores. Daí sua evidente relação com os cinemas terceiromundistas dos anos 60 e 70, na sua negação de uma temporalidade evolucionista e colonialista, unívoca e teleológica, e o desejo utópico de uma comunicação possível (mas talvez improvável) em outro lugar, em outro nível, em outro tom que não o do realismo dito "cru" ou um cinema de vitimização ou auto-indulgência. A Vida sobre a Terra comenta a contradição da qual faz parte e que é obrigado a encarar. Sua existência como filme nasce de um convite do "colonizador" e nasce da assunção da crença desse calendário que pressupõe a regularidade das mudanças do mundo. O filme de viagem, o filme-travelling, de Sissako aceita o pacto para subvertê-lo; para, em mais um jogo de duplicação de si, devolver uma outra coisa, uma carta que o jogo inicialmente não pressupunha, uma parte que tenta reconfigurar o todo, apesar da pouca esperança ("a comunicação é questão de sorte" diz um dos personagens). Um homem que grita, talvez para ninguém, mas não um urso que dança.

Janeiro de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


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