A
Via Láctea, de Lina Chamie (Brasil,
2007) por Paulo Santos Lima O
encontro com o cosmos
A explosão. A explosão que
criou o universo, o espaço sideral, a via láctea. A via láctea que sustenta a
noite, segura a escuridão, impedindo-a de cair aqui embaixo, aos fragmentos, em
nossos pés. Rompante sideral, luminar, barrando as trevas. Bomba de cosmos matando
com seus sóis o absoluto do escuro espacial. Em explosão semelhante também estão
os personagens de A Via Láctea, de Lina Chamie. Aqui
embaixo, na Terra, Heitor (Marco Ricca) desatina após sua namorada, Júlia (Alice
Braga), terminar a relação. Um dramático telefonema que deflagra a saída desesperada
deste homem pelas ruas, querendo seguir uma trajetória em linha reta (em direção
a tudo que amamos, meio como diz a instância narradora que banha todo o filme),
mas andando em círculos, ricocheteando como uma bala perdida pelas alamedas da
cidade, ruas engarrafadas, luzes semáforas em vermelho sanguíneo contrastado à
monocor acinzentada concreta e asfáltica. Uma explosão que lança Heitor dramaticamente
para o mundo, mas ele não encontra a luz da vida, do tal amor que é essência da
vida. Ele é barrado pelo trânsito enfartado, pela opressão labiríntica das avenidas
intestinais da metrópole, pelo estanque. Nessa trajetória
desesperada e agônica de um Heitor com razão avariada, memórias fundem-se com
o tempo presente. Ou com o futuro: não sabemos, porque o filme trabalha numa dinâmica
de fluxos de experiências do personagem e de instâncias narrativas, com colagens
fluidas de textos literários, nomes de livros que flutuam pelo enquadramento,
poesias, versos e prosas entre Heitor e Júlia, ou ora de Heitor, ora de Júlia.
A diretora Lina Chamie borda a história de amor derrocado entre Heitor e Júlia
com o retroses de música clássica (Satie) e MPB (Gilberto Gil), do teatro do Oficina
e de trechos literários da literatura brasileira entre Manuel Bandeira, Carlos
Drummond e o pai Mario Chamie. É
uma amplificação do que fizera em seu longa anterior, Tônica Dominante.
Agora, a explosão de sentimentos está consumada, com tudo pulsando fortemente,
espalhando-se pelo mundo, enquanto no filme de 2000 havia uma contenção colossal
que aprisionava e continha o amor nuclear do rapaz, com momentos tão raros quanto
valiosos de expansão, tudo mostrado por uma câmera mais transparente, mais calma
em seus enquadramentos e que, vez e outra, entregava-se ao êxtase, à elevação,
girando festivamente pelo espaço. Em A Via Láctea, a câmera é na mão, quase
que histericamente tremida, a montagem feita com cortes secos, alguns planos maiores,
mas a grande parte deles mais curtos – bem mais que as longas tomadas do também
belo Tônica Dominante. Há algo meio expressionista
pelo modo como a cidade é mostrada ao longo do filme (agônica com seu caos concreto
e seus zumbis e anjos urbanos, pobreza material infiltrada no frenesi cosmopolita,
quando com Heitor, e mais “belle époque”, “place des arts”, quando com Júlia ou
no alvorecer romântico do casal). Heitor, por exemplo, tem em seu apartamento
um oásis de ordem; assim como Júlia, cuja casa sugere uma praça bucólica. Vale,
aqui, mencionar uma das mais formidáveis seqüências do cinema brasileiro dos últimos
tempos, quando Júlia, após caminhar majestosamente pelos bulevares do centro de
São Paulo, chega a uma livraria e brinca de esconder com Heitor, ambos em plena
interação com o espaço, corpos transitando pelos corredores bibliotecários, por
entre livros e estantes. As imagens, aqui, mostram um equilíbrio tocante, harmonia
total entre corpos e espaços. É esse estar no mundo (num
mundo que de certa maneira já existe previamente, ou seja, em chave nada expressionista)
que interessa aqui. É o estar no mundo, inclusive, o motivo de ruptura entre Júlia
e Heitor. Há um momento-chave, dramático, com um Heitor atropelado, em que Júlia
lhe diz que “estou aqui” (ela está ali, ao lado dele, em momento pós-ruptura).
A divergência que corroía o casal vinha de uma contenção de Heitor ao mundo ao
mesmo passo em que pedia à sua pequena uma urgência em estarem um ao lado do outro,
casados, em proximidade total. Ele, mais controlado no manejo de seu corpo no
mundo. Ela, pura extroversão, atriz de teatro, expondo seu corpo ao mundo, como
as bacantes da peça homônima na qual conhece Heitor (momento em que ocorre uma
efetiva via de acesso entre ambos, com Heitor sendo capturado pelas atrizes à
cena). É do mundo, de seus objetos, que vem o contato: ela usa um livro de ciência
para definir quem é o “homem Heitor”; ele busca a poesia de Carlos Drummond de
Andrade num livro em estante para se expressar à amada. O
arroubo do contido Heitor é, como a via láctea, para barrar com luz a escuridão:
encontrar a vida através do amor, da comunhão corporal que barra o breu da solidão,
esse estado em que falta a um corpo a conexão a outro. O drama de Heitor é não
ter essa busca estancada pelo infortúnio do mundo. Interessante como A Via
Láctea, mesmo mais cético sobre o encontro humano do que o anterior Tônica
Dominante, coloca na tela o amor em viés largamente mais luminoso e potente...
amor como sopro de vida, cosmos absoluto. Setembro de
2007 editoria@revistacinetica.com.br
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