in loco - cobertura dos festivais

A Vala (Jiabiangou), de Wang Bing (China, 2010)
por Filipe Furtado

Arqueologia da História

Os documentários de Wang Bing são pensados num processo de instalação que estabelece o espectador no seu universo, parte via duração (menos a longa duração total de alguns filmes, e mais dos pequenos momentos individuais), e parte por uma idéia constante de peso físico das coisas, que se estabelece a cada cena. A Vala é o primeiro longa-metragem de ficção do cineasta, e o que notamos num primeiro momento é justamente como esta passagem do documentário para ficção se dá de maneira simples para ele. O que há de marcante em A Vala é o mesmo que se destacava em A Oeste dos Trilhos ou Fengming, sua mise-en-scène extremamente similar ao dos filmes de não-ficção.

Estamos nos anos 60, no meio do chamado processo de reeducação do regime comunista chinês. Um grupo de homens “direitistas” está num campo de trabalho, na região do deserto de Gobi, cuidando da construção da tal vala do título. O trabalho, porém, logo é interrompido, já que os homens estão fracos e não há praticamente alimento para a quantidade de prisioneiros-trabalhadores. O que se segue é um longo estudo sobre homens definhando de fome. A permanência de A Vala não é tanto da ordem das ações extremas – e Bing espertamente coloca a maior parte delas no fora de tela – mas das coisas. O que registra com impacto são os cobertores sobre os quase cadáveres, o espaço apertado do dormitório onde a maior parte da ação se passa, ou o cemitério a semi céu aberto. É um olhar essencialmente materialista para a história (e todos os filmes de Wang Bing, sejam ou não contemporâneos, são filmes da história), que reconhece que o impacto do seu testemunho está no que o cinema pode expor de forma mais direta e concreta.

E é ai que vale a pena traçar um paralelo entre A Vala e um filme que é seu exato oposto, Nostalgia da Luz, de Patricio Guzman. Ambos são filmes que retornam aos excessos de regimes (no caso do filme de Guzman, o de Pinochet) – excessos estes que já foram expostos pelo cinema múltiplas vezes, e podem facilmente ser descartados como “desnecessários” de acordo com as preferências ideológicas do crítico/cinéfilo. Só que o que impressiona quando colocamo-los lado a lado é justamente como representam uma visão de olhar histórico no cinema radicalmente opostas. Tudo no filme chileno – a começar pelo seu ponto de partida extremamente artificial – existe numa ordem para além daquelas pessoas que o regime deixou para trás; as vítimas nunca são pessoas, mas números e conceitos que pertencem a uma denúncia, a elas estando negado o direito de efetivamente existir na tela. Tudo no filme de Wang Bing parte exatamente da pergunta que escapa a um cineasta como Guzmán: diante destas pessoas e do que elas passaram; como podemos reimaginar isso e traduzir em ações práticas?

Imaginação é uma expressão que associamos geralmente a ficções menos realistas, mas ela é chave do sucesso de A Vala, pois o que torna o filme de Bing notável é justamente sua capacidade de imaginar seu drama em ações. O drama de A Vala é da ordem do intolerável: homens famintos porque a burocracia é incapaz de lidar com a situação deles. Mas este é um intolerável de atos claros, e não simples resultado dos desmandos de um regime ideológico específico. O que move Bing é a experiência que estes homens todos passaram, e que seu filme busca esculpir em toda sua dor física cena após cena. Sua câmera – numa fotografia digital que nunca esconde sua contemporaneidade –, sempre dura e impassível, une o espaço dos vivos com o espaço dos mortos. Já não sabemos mais se o dormitório não passa de uma cova enterrada no deserto no qual estes homens vão esperar a morte no seu purgatório particular. Restam os rastros – lugares, vestimentas, objetos – que testemunham este processo de desumanização. A instalação de Bing se completa e o intolerável ganha corpo.

Novembro de 2010

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