Austrália (idem), de Baz Luhrmann (EUA/Austrália, 2008)
por Fábio Andrade

Excesso dos excessos

No cinema contemporâneo, é perceptível a presença de realizadores que se dedicam a uma estética do absoluto excesso. O excesso é uma característica de método que conecta interesses diversos, que passam pelo transbordamento dos gêneros (Johnny To); a manipulação do espaço pela computação gráfica, seja ele cênico (os Wachowski e seu Speed Racer) ou topográfico (Peter Jackson); a estilização plástica das convenções cinematográficas (Wong Kar-wai ou Takashi Miike); a auto-suficiência de cada mínima unidade de composição dos filmes (bem dosada em José Eduardo Belmonte; desgastante em Paolo Sorrentino); e até mesmo o derrame neo-barroco de Luiz Fernando Carvalho, e dos wuxia de Zhang Yimou. Não é questão, aqui, de querer conformar uma leva de filmes extremamente diversos em um balaio apertado, mas sim de perceber que o cruzamento dessas diferenças com esse apreço pela maximização do signo cinematográfico colaboram, ao fim, para a compreensão de Austrália, quarto longa de Baz Luhrmann.

Austrália seria o ápice dessa estética do excesso não exatamente por suas intenções épicas, mas principalmente por ser fruto de um artista decidido a esgotar todas essas diferentes abordagens em um mesmo filme. Para começar, por esse "mesmo filme" não ser exatamente um filme: temos a divisão quase simétrica de duas narrativas principais, terminando a primeira com a venda do gado, e começando, na metade do filme, a narrativa de guerra anunciada pelo prólogo. Dentro desses dois núcleos principais, temos uma meia-dúzia de sub-núcleos mais ou menos autônomos, cada um com seu arco dramático, seu tom, seu gênero mais caro. A questão mais problemática (e mais fascinante) de Austrália não está no raciocínio que organiza essa exigente estrutura, mas justamente em sua absoluta inexistência.

Tomemos como exemplo os primeiros minutos do filme: após um prólogo de fábula infantil, partimos da Inglaterra com Sarah Ashley (Nicole Kidman) e as gruas do desbravamento histórico de Cláudia Cardinale em Era Uma Vez No Oeste. Mas aportamos em uma terra onde Hugh Jackman até tenta se parecer com o jovem Clint Eastwood, mas gostaria mesmo é de ser Indiana Jones. Por um momento, a jocosidade burlesca que já dominava Moulin Rouge parece reservar para Austrália uma curiosa irreverência histórica - ainda mais surpreendente por ser um filme patrocinado pelo estado australiano. Estaríamos, a princípio, diante de um western no eastern mais extremo, em uma versão violeta do Sukiyaki Western Django, de Takashi Miike. Mas Austrália não pode ser só isso, pois também quer ser um filme de aventura, um melodrama histórico, um romance, um poema épico, um mea culpa político, um musical – e daí nasce a obrigação inventada de Luhrmann passar superficialmente por todos esses gêneros, espalhando a esmo convenções que apertam os pequenos passos de um filme de quase três horas de duração.

Temos a crueza plástica à Monument Valley do outback australiano, mas também as tardes rosadas e as noites hiper-estreladas pelo CGI. Temos a beleza sempre irretocável do deserto, seja ele a manifestação da seca ou dos bombardeios japoneses. Temos planos que raramente passam dos cinco segundos de duração, mas que tomam cada milímetro da tela com a ambição de dar conta de o imaginário de um país. Temos tomadas aéreas, aborígenes em contraluz, slow motion, e câmera sub-aquática até mesmo dentro de uma caixa d'água. E como não há tom a ser sustentado, a esquizofrenia completa se torna única constante, em uma colagem incessante de fragmentos exuberantes que muitas vezes se anulam na montagem. A relação com o filme patina entre a vontade de embarcar nessa franca picaretagem, e a frustração por ela não só não ser tão franca assim, mas também nunca se sustentar.

Existe um prazer infantil em ver Luhrmann dar a uma venda de gado o tratamento do last minute rescue de Way Down East, de Griffith, ou se encantar com a possibilidade de estabelecer paralelos nada sistematizados com O Mágico de Oz; mas esse maravilhamento com as potências do próprio cinema é frequentemente travado pela correção política no discurso pós-racial sobre a mestiçagem, e a falta de domínio dessa carpintaria (basta olharmos para o trabalho com Nicole Kidman, ou toda a estória do garoto Nullah – interpretado por Brandon Walters). Se no passado a sua cultura de excessos superava a inaptidão realizadora, gerando momentos pontuais de bastante força em seus dois filmes anteriores (pensemos no prólogo de Romeu e Julieta, ou no primeiro terço de Moulin Rouge), aqui ela se esfacela em uma falta absoluta de foco e controle. Austrália é uma bagunça monumental; um paquiderme de pés pequenos e apressados, que sofre mais por nunca perceber que é absolutamente desmiolado.

Fevereiro de 2009

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